Antropofagia Kulina e Alcoolismo
Em minhas andanças deste final da temporada de chuvas na Amazônia, muito pouco tenho podido acessar o blog e por essa inatividade não tenho podido comentar ou publicar algumas notícias referentes à nossa temática central que é a das relações interculturais dos povos ameríndios. Espero poder sanar isto em breve e inclusive referenciar os links internos das diferentes matérias desta publicação virtual, elaborando o índice temático para facilitar a consulta dos leitores.
Um assunto entretanto que teve destaque na mídia televisiva e também internacional, o caso do assassinato de um jovem deficiente mental no município amazonense de Envira, atribuído a um grupo de kulinas que inclusive teriam praticado canibalismo após esquartejar a vítima, merece nossas considerações sobre o que nos permite descortinar sobre a realidade das populações ameríndias nos sertões do Brasil.
O padre Malagrida, um taumaturgo jesuíta italiano que andarilhou pelo Nordeste da colônia portuguesa no século 18, foi o primeiro a contrapor-se ao pensamento formal da Companhia de Jesus (expresso nos Exercícios Espirituais do fundador da ordem, Ignacio de Loyola) ao aperceber-se que a catequização não devia estar voltada aos indígenas e sim aos colonizadores brasileiros que, colocados na distância dos centros urbanos, pouco afeto tinham em relação à ideologia cristã. Faço esta breve menção para explicar o sentimento que consigo discernir nos espaços de convivência atuais entre os povos ameríndios e os ribeirinhos dedicados ao extrativismo na Amazônia. Em uma postagem anterior da passagem de ano, reproduzi aqui neste blog algumas considerações do Padre Paolino, da Prelazia do Purus em Sena Madureira, destinadas ao Senador Tião Viana, do Acre, quando se dizia que os índios contemplados pelos benefícios sociais do governo estavam com isso tornando-se dependentes de viagens mensais às sedes dos municípios acreanos onde se tornavam presas fáceis dos maus exemplos exibidos pelas populações ribeirinhas, em especial o alcoolismo.
Anos atrás, quando permaneci quatro meses nas aldeias hunikuins do Alto Purus (Fronteira Kassianã e Cana Recreio) tive a determinação de não usar bebidas alcoólicas nesse período de convivência, atitude esta que considero ter sido essencial para o sucesso de minha viagem. Na ocasião inclusive participei de uma festa do mariri numa aldeia kulina, onde presenciei um extremado consumo de aguardente mas não me envolvi com esses excessos. Lá na aldeia Fronteira Kassianã eu também testemunharia que, quando do regresso do membro da aldeia que estivera em Rio Branco para capacitar-se como auxiliar de enfermagem e assim atuar junto à população hunikuin, este a título de comemoração junto a seus parentes abrira uma caixa de garrafas de álcool 96 graus para as consumirem alegremente temperadas com suco de limão. Isso me motivou a publicar em 1995 no Peru um ensaio intitulado “Los ìndios del Alto Purus entre el Ayahuasca y el Alcoolismo”.
Em Assis Brasil, no Alto Acre, município que atende populações jaminawas e manchineris da região, fiz este flagrante fotográfico da venda de garrafas de álcool no maior supermercado da cidade. Como se fosse algo natural, as garrafas são oferecidas ao consumidor lado a lado com garrafas de vermute, aguardente e batidas de frutas, o que demonstra haver para a população urbana uma natural conivência com esse tipo de consumo (e venda). O lugar é frequentado tanto por indígenas quanto por visitantes peruanos e bolivianos, e obviamente não se faz distinção entre uns e outros para o livre comércio de álcool hidrogenado. Isto não acontece apenas ali, mas em todos os municípios da região é algo comum, e dificilmente acontece fiscalização por parte das autoridades para coibir essa prática. No município de Jordão presenciei um chefe indígena entrando num bar para tomar uma dose de cachaça e pedindo outra para seu motorista (barqueiro), no caso um hunikuin de quinze anos que inclusive é vegetariano por determinação própria. Saí dali antes de ver se o rapaz consumia ou não a bebida a ele servida pois não sabia se ele teria força de vontade de se negar a esse “brinde”. São, a meu ver, os comerciantes ribeirinhos, tanto os colocados nas cidades quanto os que atendem às aldeias em seus regatões (barcos de comércio), os principais responsáveis pela disseminação deste vício que tanto contamina mentes e cultura desses povos.
Quando estive certa ocasião por ser nomeado chefe de posto indígena da Fundação Nacional do Índio, em 1993, um dos antigos funcionários da Funai em Rio Branco já me advertia que para uma boa convivência com os índios eu devia fazer vista grossa para o problema do alcoolismo, ou estaria me expondo a criar inimizades entre os lideranças ou até mesmo a ser vitimado por algum deles. Essa incapacidade da Funai em lidar com o assunto se extende também às organizações que se dedicam a apoiar as populações indígenas, as quais se engajaram a partir dos anos 70 na luta pela demarcação de terras e na formação de lideranças e entretanto jamais se esforçaram por tratar essa espinhosa questão que representa um grave problema de saúde. Sem incluirem em seus projetos posteriores a devida mensuração de resultados na capacitação dos indígenas em atividades de educação e saúde, essa bola de neve tem sido rolada barranco acima, originando em muitos casos falsas expectativas da capacidade de possuírem as novas gerações o alcance de recursos intelectuais para a autogestão de suas comunidades. Alcoolismo e aculturação andam de mãos dadas na Amazônia, e tanto é a aculturação que leva ao alcoolismo quanto o alcoolismo que conduz à aculturação, isso deve ser deixado bem claro. Enquanto o problema não for enfrentado, talvez por exemplo com a colaboração da República Popular da China, que encontrou em sua medicina tradicional uma planta capaz de curar este vício, estaremos enfeitando o bolo mas não tornando-o capaz de nutrir nossos jovens e crianças como devido.
No caso do município amazonense de Envira, que fica próximo ao município acreano de Feijó, a reportagem evidenciou que os kulinas estavam junto a uma ponte de madeira num caminho de terra consumindo álcool 96 graus com o rapaz que terminou sendo assassinado. Vítimas de intoxicação alcóolica, é de se imaginar que sua interação com o jovem ribeirinho tenha resultado em conflito e briga, e como o jovem apresentava problemas mentais e tampouco tinha como saber se conduzir nessa situação extrema, o incidente resultou em morte. O que se seguiu ao assassinato, ou seja, o esquartejamento da vítima, deve ter sido uma patética tentativa de ocultamento de cadáver por parte dos kulinas alcoolizados, inclusive com incineração dos despojos, o que levou a população de Envira a dramatizar a situação julgando ter acontecido canibalismo, o que condiz com seu imaginário de confronto com as populações ameríndias desde a chegada dos primeiros colonizadores ao Brasil. Aqui havia sim, antropofagia ritual por parte de muitas etnias, mas nunca o canibalismo tal qual imaginado pelos europeus da Idade Média.
O fato jornalístico difundiu-se na mídia internacional com esse viés espetacular de crime bárbaro e hediondo. Os fundamentos da questão, entretanto, não foram considerados: quem são os madihá kulina, quem são os ribeirinhos dos pequenos municípios da Amazônia, qual grau de aculturação ambos grupos encontram-se submetidos, qual a situação do comércio de bebidas alcoólicas na região e quais atividades de combate ao alcoolismo implementadas pelas instituições dedicadas à educação e saúde dessas comunidades. Vinte anos após o lançamento da Aliança dos Povos da Floresta, temos que ficar com as considerações do brasilianista Roberto Mangabeira Unger, hoje Ministro de Assuntos Estratégicos do governo brasileiro, no esboço de proposta de seu “Projeto Amazônia”:
“Grande parte da Amazônia está reservada aos indígenas. Destinatários de terras, os indígenas estäo, entretanto, desfalcados de instrumentos e de oportunidades. Negam-se-lhes os meios para fazer algo com as terras que lhe säo reservadas. Sem condiçöes para progredir ou sequer para sustentar-se, ameaçam afundar na desagregaçäo social e moral - no ócio involuntário, no extrativismo desequipado, no alcoolismo e no suicídio. Estranha combinaçäo de generosidade e de crueldade, essa com que os tratamos.
A transformaçäo da Amazônia deve vir acompanhada pela libertaçäo dos indígenas. Libertá-los näo é apenas dar-lhes terras e proibi-los de usá-las. Libertar-los é assegurar-lhes os meios para educar-se (em mais de uma língua e mais de uma cultura), para empreender e para associar-se com os governos e os empresários que lhes possam servir de sócios. O soerguimento dos povos indígenas será um dos indícios mais importantes de êxito na transformaçäo da Amazônia”.
Para se saber mais a respeito, leiam: "Pajé yawanawá nega prática de canibalismo entre kulina do Envira", "Índios Kulinas negam Canibalismo" e Blog do Brasiliense.
Um assunto entretanto que teve destaque na mídia televisiva e também internacional, o caso do assassinato de um jovem deficiente mental no município amazonense de Envira, atribuído a um grupo de kulinas que inclusive teriam praticado canibalismo após esquartejar a vítima, merece nossas considerações sobre o que nos permite descortinar sobre a realidade das populações ameríndias nos sertões do Brasil.
O padre Malagrida, um taumaturgo jesuíta italiano que andarilhou pelo Nordeste da colônia portuguesa no século 18, foi o primeiro a contrapor-se ao pensamento formal da Companhia de Jesus (expresso nos Exercícios Espirituais do fundador da ordem, Ignacio de Loyola) ao aperceber-se que a catequização não devia estar voltada aos indígenas e sim aos colonizadores brasileiros que, colocados na distância dos centros urbanos, pouco afeto tinham em relação à ideologia cristã. Faço esta breve menção para explicar o sentimento que consigo discernir nos espaços de convivência atuais entre os povos ameríndios e os ribeirinhos dedicados ao extrativismo na Amazônia. Em uma postagem anterior da passagem de ano, reproduzi aqui neste blog algumas considerações do Padre Paolino, da Prelazia do Purus em Sena Madureira, destinadas ao Senador Tião Viana, do Acre, quando se dizia que os índios contemplados pelos benefícios sociais do governo estavam com isso tornando-se dependentes de viagens mensais às sedes dos municípios acreanos onde se tornavam presas fáceis dos maus exemplos exibidos pelas populações ribeirinhas, em especial o alcoolismo.
Anos atrás, quando permaneci quatro meses nas aldeias hunikuins do Alto Purus (Fronteira Kassianã e Cana Recreio) tive a determinação de não usar bebidas alcoólicas nesse período de convivência, atitude esta que considero ter sido essencial para o sucesso de minha viagem. Na ocasião inclusive participei de uma festa do mariri numa aldeia kulina, onde presenciei um extremado consumo de aguardente mas não me envolvi com esses excessos. Lá na aldeia Fronteira Kassianã eu também testemunharia que, quando do regresso do membro da aldeia que estivera em Rio Branco para capacitar-se como auxiliar de enfermagem e assim atuar junto à população hunikuin, este a título de comemoração junto a seus parentes abrira uma caixa de garrafas de álcool 96 graus para as consumirem alegremente temperadas com suco de limão. Isso me motivou a publicar em 1995 no Peru um ensaio intitulado “Los ìndios del Alto Purus entre el Ayahuasca y el Alcoolismo”.
Em Assis Brasil, no Alto Acre, município que atende populações jaminawas e manchineris da região, fiz este flagrante fotográfico da venda de garrafas de álcool no maior supermercado da cidade. Como se fosse algo natural, as garrafas são oferecidas ao consumidor lado a lado com garrafas de vermute, aguardente e batidas de frutas, o que demonstra haver para a população urbana uma natural conivência com esse tipo de consumo (e venda). O lugar é frequentado tanto por indígenas quanto por visitantes peruanos e bolivianos, e obviamente não se faz distinção entre uns e outros para o livre comércio de álcool hidrogenado. Isto não acontece apenas ali, mas em todos os municípios da região é algo comum, e dificilmente acontece fiscalização por parte das autoridades para coibir essa prática. No município de Jordão presenciei um chefe indígena entrando num bar para tomar uma dose de cachaça e pedindo outra para seu motorista (barqueiro), no caso um hunikuin de quinze anos que inclusive é vegetariano por determinação própria. Saí dali antes de ver se o rapaz consumia ou não a bebida a ele servida pois não sabia se ele teria força de vontade de se negar a esse “brinde”. São, a meu ver, os comerciantes ribeirinhos, tanto os colocados nas cidades quanto os que atendem às aldeias em seus regatões (barcos de comércio), os principais responsáveis pela disseminação deste vício que tanto contamina mentes e cultura desses povos.
Quando estive certa ocasião por ser nomeado chefe de posto indígena da Fundação Nacional do Índio, em 1993, um dos antigos funcionários da Funai em Rio Branco já me advertia que para uma boa convivência com os índios eu devia fazer vista grossa para o problema do alcoolismo, ou estaria me expondo a criar inimizades entre os lideranças ou até mesmo a ser vitimado por algum deles. Essa incapacidade da Funai em lidar com o assunto se extende também às organizações que se dedicam a apoiar as populações indígenas, as quais se engajaram a partir dos anos 70 na luta pela demarcação de terras e na formação de lideranças e entretanto jamais se esforçaram por tratar essa espinhosa questão que representa um grave problema de saúde. Sem incluirem em seus projetos posteriores a devida mensuração de resultados na capacitação dos indígenas em atividades de educação e saúde, essa bola de neve tem sido rolada barranco acima, originando em muitos casos falsas expectativas da capacidade de possuírem as novas gerações o alcance de recursos intelectuais para a autogestão de suas comunidades. Alcoolismo e aculturação andam de mãos dadas na Amazônia, e tanto é a aculturação que leva ao alcoolismo quanto o alcoolismo que conduz à aculturação, isso deve ser deixado bem claro. Enquanto o problema não for enfrentado, talvez por exemplo com a colaboração da República Popular da China, que encontrou em sua medicina tradicional uma planta capaz de curar este vício, estaremos enfeitando o bolo mas não tornando-o capaz de nutrir nossos jovens e crianças como devido.
No caso do município amazonense de Envira, que fica próximo ao município acreano de Feijó, a reportagem evidenciou que os kulinas estavam junto a uma ponte de madeira num caminho de terra consumindo álcool 96 graus com o rapaz que terminou sendo assassinado. Vítimas de intoxicação alcóolica, é de se imaginar que sua interação com o jovem ribeirinho tenha resultado em conflito e briga, e como o jovem apresentava problemas mentais e tampouco tinha como saber se conduzir nessa situação extrema, o incidente resultou em morte. O que se seguiu ao assassinato, ou seja, o esquartejamento da vítima, deve ter sido uma patética tentativa de ocultamento de cadáver por parte dos kulinas alcoolizados, inclusive com incineração dos despojos, o que levou a população de Envira a dramatizar a situação julgando ter acontecido canibalismo, o que condiz com seu imaginário de confronto com as populações ameríndias desde a chegada dos primeiros colonizadores ao Brasil. Aqui havia sim, antropofagia ritual por parte de muitas etnias, mas nunca o canibalismo tal qual imaginado pelos europeus da Idade Média.
O fato jornalístico difundiu-se na mídia internacional com esse viés espetacular de crime bárbaro e hediondo. Os fundamentos da questão, entretanto, não foram considerados: quem são os madihá kulina, quem são os ribeirinhos dos pequenos municípios da Amazônia, qual grau de aculturação ambos grupos encontram-se submetidos, qual a situação do comércio de bebidas alcoólicas na região e quais atividades de combate ao alcoolismo implementadas pelas instituições dedicadas à educação e saúde dessas comunidades. Vinte anos após o lançamento da Aliança dos Povos da Floresta, temos que ficar com as considerações do brasilianista Roberto Mangabeira Unger, hoje Ministro de Assuntos Estratégicos do governo brasileiro, no esboço de proposta de seu “Projeto Amazônia”:
“Grande parte da Amazônia está reservada aos indígenas. Destinatários de terras, os indígenas estäo, entretanto, desfalcados de instrumentos e de oportunidades. Negam-se-lhes os meios para fazer algo com as terras que lhe säo reservadas. Sem condiçöes para progredir ou sequer para sustentar-se, ameaçam afundar na desagregaçäo social e moral - no ócio involuntário, no extrativismo desequipado, no alcoolismo e no suicídio. Estranha combinaçäo de generosidade e de crueldade, essa com que os tratamos.
A transformaçäo da Amazônia deve vir acompanhada pela libertaçäo dos indígenas. Libertá-los näo é apenas dar-lhes terras e proibi-los de usá-las. Libertar-los é assegurar-lhes os meios para educar-se (em mais de uma língua e mais de uma cultura), para empreender e para associar-se com os governos e os empresários que lhes possam servir de sócios. O soerguimento dos povos indígenas será um dos indícios mais importantes de êxito na transformaçäo da Amazônia”.
Para se saber mais a respeito, leiam: "Pajé yawanawá nega prática de canibalismo entre kulina do Envira", "Índios Kulinas negam Canibalismo" e Blog do Brasiliense.
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