29 de dezembro de 2008

Padre Paolino e os Indios

Foto: Erikson, 1985.
"Nestes últimos anos foram aposentados muitos índios, mais Kaxinauá que Kulina, mas o que se pensava que fosse um bem se tornou verdadeira calamidade. Os velhos baixam para a cidade com uma enorme canoada de gente para tirar o dinheiro da aposentadoria e compram álcool e ficam bêbados e o dinheiro não dá para nada. Não tendo dinheiro para comprar a gasolina, vão com a Funai. Gostaria que as crianças não procurassem comida nas caixas de lixo.

Nestas viagens tocadas pela fome exterminam tudo andando no rio Purus, que era tão rico, e hoje não se vê mais nada. Nada mais de tracajá, de tartaruga, de surubim, de mutum. Está se espalhando o deserto em tudo. Adeus às riquezas da fauna do rio Purus. As professoras das escolas fazem a mesma coisa, perdem mais de dois dias de aulas por mês, pois descem para tirar o dinheiro e muitas vezes comprar álcool para as aldeias delas. O que deveria ser uma ajuda se torna uma calamidade. Continuo a viagem na aldeia Fronteira. Antigamente os Kaxinauás eram fortes e resistentes e agora estão liquidados pelo álcool e a doença toma conta, de modo especial a cirrose hepática.

Tudo que estou contando mostra a situação dos índios. O que notei mais e que as crianças, que são muitas, estão passando fome. Precisamos tomar providências e o senhor como senador e médico pode ajudar. O conselho que dou é de conseguir com a Funai central trocar o dinheiro da aposentadoria e dos professores: não entregar dinheiro, mas mercadoria correspondente ao dinheiro e ter um barco que vai entregar diretamente nas aldeias e incentivar a agricultura. Que o Governo compre arroz, banana, feijão e deixe para as crianças das escolas. Os adultos mantenham as crianças com a ajuda do Governo e com o trabalho. Fiscalizar seriamente os marreteiros e fazendeiros para que não usem mão-de-obra barata indígena a troco de álcool. Não deve acontecer que o dinheiro do Governo seja o maior incentivador do vício e o índio baixando na cidade, aprenda do branco tudo que há de pior.

Lanço este grito angustiante para salvar os índios, que estão afundando como um barco velho. Confio realmente que o bom amigo lance em meu nome este grito angustiante de socorro lá no Senado. Salvemos os índios e com eles a fauna e a flora."
(1999)

"Não gosto realmente de lembrar o índio como folclore, mas como realmente ele e, na sua simplicidade, na sua partilha, nas suas danças nas noites e luar, nos altos dos barrancos do rio Purus, enquanto a lua estendia um véu misterioso de prata e tornava aquelas noites em um saber quase místico. Admiro o índio, especialmente o Kulina, que conheço mais e no meio deles vivi e saboreei a cultura.

Tudo falava de alegria. Os meninos se levantavam de manhã, ajeitavam os seus pequenos arcos e pequenas flechas, se internavam na mata caçando e voltavam à roda de um foguinho, assavam a caça – que muitas vezes era um calango, um rato coró. Como era bonito escutar a descrição da caça.

As meninas seguiam as mães com um cesto nas costas e iam para o roçado, limpando e ajudando-as com pequenas facas, que limpavam estivas, às vezes com a pequenina na tipóia, que ficava mamando enquanto a mãe limpava o roçado e, chegando na aldeia, faziam o fogo e assavam macaxeira e bananas, enquanto a menina maiorzinha embalava a criancinha na rede cantando saudosas e suaves melodias. Tudo respirava serenidade.

Não quero dizer com isto que não tivessem defeitos porque todo ser humano tem, mas a grande vantagem que mais achava neles é que não tinham ganância. A criança era criada com liberdade e não era nunca açoitada. Um dia, uma criancinha foi tirar um peixinho que assava no fogo no terreiro e se queimou e correu para a mãe, chorando, e a mãe não bateu nem repreendeu. Só disse: "Vai buscar de novo". E ela foi e se queimou e chorou de novo e correu até a mãe. A mãe disse: "Vai buscar de novo", mas ela não foi e aprendeu que não devia mexer com fogo.

Infelizmente esta cultura foi deturpada pela ganância que introduziu o álcool, e o gado que tinham e que prosperava bem foi vendido a troco de enxada e de álcool. Um patrão fez um grande campo ara o gado com a mão-de-obra barata dos índios e o pagamento era o álcool, porque o índio não valia nada, não sabia nada. Pelo menos agora, entendemos que devemos amar os índios e a cultura deles e o esforço do Governo está neste sentido, embora aprenderam o infeliz caminho da cidade, mas reconhece-los, ajudá-los e amá-los já é muita coisa. Infelizmente pedem o que prejudica mais, mas porque querem imitar o branco e dos brancos assumem os defeitos. Os índios devem ser amados porque no fundo da cultura deles nos dão uma mensagem de esperança. No mundo de um capitalismo selvagem, consumista e individualista, nos dizem que devemos partilhar, que a vida é alegre, devemos vive-la em abundância.

Os homens iam pra as roçadas e cantavam e trabalhavam todos juntos. Tudo era partilhado, era trabalho, era caça, era pesca. Não era uma sociedade competitiva e egoísta. É verdade que nas casas não tinha nada, mas é verdade que todos, desde pequenos, se acostumavam a procurar na floresta e no rio o que comer. Sempre íamos nos roçados com eles, mas sempre me colocavam perto de uma pessoa de confiança, porque não conhecendo a mata podia acontecer alguma coisa e de fato um dia, levantando o facão, vi o índio segurar o braço e gritar "cobra, cobra" e era uma perigosa papagaia. Outra vez, dois meninos estavam ao meu lado e com o facão terçado roçavam o mato. A um certo ponto o menino gritou "macá"; não entendendo bem, continuei e os dois seguraram a minha mão e mostraram uma terrível "pico de jaca". Nestes pequenos atos percebia a delicadeza deste povo humilde, simples, mas também extremamente brincalhão.

Um dia estavam roçando e havia muita jurubeba. Não sabendo bem a língua, gritavam "pari". Eu pensava que fosse "Padre" e ficava parado e a jurubeba caía em cima de mim com os espinhos e eles riam, mas "pari" queria dizer "cuidado, cuidado!".

Ia caçar com eles, mas eu não sabia caçar e tinha ódio por causa da guerra de armas, mas eles defendem a personalidade de cada um e ninguém pode ser desprezado na comunidade e quando chegava na aldeia me davam um quarto de veado para levar para casa. Assim era a pesca, embora não pescasse quase nada, dividiam o peixe e me davam para entrar honradamente na aldeia e não ser humilhado. Na aldeia sempre vi muita criatividade. As mulheres descaroçavam o algodão, fiavam e ao mesmo tempo falavam e riam animadamente".
(16 de abril de 2002)

Fonte: Cartas publicadas em "As Histórias do Padre Paolino Baldassari", em livro editado pelo Gabinete do Senador Tião Viana em 2004. Leia mais sobre Padre Paolino no blog de Rogelio Casado . Imagem: DOBES

Um comentário:

Dona Sra. Urtigão disse...

Outro dardos para voce!
O bom deste espaço é que mesmo quando voce esta ausente, há tanta coisa importante para se (re)descobrir, que faço visitas frequentes...Vou chegando, passeando, aprendendo sem jamais me cansar ou esgotar tudo daqui. ABRAÇO! A voce e aos Povos da Floresta