15 de setembro de 2008

Imagens Sonoras do "Huni Meka"

"De duplos e estereoscópios: paralelismo e personificação nos cantos xamanísticos ameríndios", de Pedro de Niemeyer Cesarino, aborda os cantos do cipó na etnia Hunikuin:

"Os cantos huni muka dos Kaxinawá (Guimarães 2002:212-ss.) em muito ilustram tais especificidades do paralelismo mobilizado por artes verbais ligadas a práticas xamanísticas. Referentes aos usos e aos rituais do nixi pae (ou ayahuasca [Banisteriopsis caapi]), os huni muka são propriamente caminhos. Os dami, suas imagens, representações ou transformações visionárias são os caminhos (bai) abertos pelo nixi pae capazes de colocarem o cantador em relação aos yuxin ("espíritos") ali presentes, ou ao "povo do nixi pae", aqueles que realmente compreendem as palavras especiais do canto composto na língua dos antigos (shenipabu hãtxa). O huni muka sobrepõe/comunica o huni, a pessoa que canta, a Yube, a sucuri ancestral hipóstase do cipó, bem como o próprio cipó-homem (pois a ayahuasca é uma pessoa para os Kaxinawá e tantos outros povos amazônicos).

Longos e reiterativos, tais cantos possuem um tom recitativo e uma curva melódica pouco acentuada; perto de seu fim, tendem a "adquirir um ritmo vertiginoso de elocução, reforçado pelo staccato das sílabas regulares e pelo caráter reiterativo dos versos" (Guimarães 2002:211). Acompanhados de estribilhos, os huni muka são dotados de uma cadência encantatória, cujo ritmo "serve como um dinamizador das imagens que vão sendo impulsionadas paratática e paralelisticamente, em uma montagem que oscila, dialeticamente, entre a quebra e a continuidade" (Guimarães 2002:214-215). Seus estribilhos dizem muito também da sinestesia, outra característica notável de certas imagéticas xamanísticas:

Cada som [do estribilho] tem uma luz diferente, uma luz ou então daquelas forças. Tem várias luzes, cores: azul, vermelho, brilhoso. E tem vários nomes de cipó diferente: baka, pati, shawa, shane [...] o pati é verde, bem macio; o baka é bem leve e brilhoso, branco como escama de peixe; shawa é daqueles vermelhos, tipo sangue – quando pega mesmo, você vê sangue igual chuva; tem shane que é azul, um pássaro bem azul. Cada cipó tem sua cor e suas músicas (Norberto Sales Tene citado por Guimarães 2002:211-212).

Na música do huni muka, o cantador joga com um conjunto razoavelmente fixo de versos, combinando "indefinidamente e com grande liberdade seqüências inteiras do canto, alternando versos e repetindo-os ao sabor da sua – ou de alheia – inspiração" (Guimarães 2002:214). Um esquema de tal combinação é apresentado abaixo, acompanhando o original em shenipabu hãtxa (a língua dos antigos), a fim de esclarecer ao leitor algo do jogo das reiterações e das estruturas paralelísticas dos versos, estrofes e cenas em questão (Guimarães 2002:216-217).

(1) Na mão imensa da onça
(2) A força moendo moendo
(3) O corpo inteiro seguindo
(4) O homem – lenho estalando
(5) Sobre ti, agora, caindo
(6) O homem – lenho rachando
(7) Faísca quente chegando
(8) Faísca quente chegando
(9) O homem – gomo esticado
(10) Esticado o talo nascendo
(11) O homem – gomo esticado
(12) Esticado o talo nascendo
(13) O corpo inteiro seguindo
(14) Na mão imensa da onça
(15) A força moendo moendo
(16) O homem – lenho estalando
(17) Sobre ti, agora, caindo
(18) Faísca quente chegando
(19) O homem – lenho rachando
(20) Sobre ti, agora, caindo
(21) O homem – gomo esticado
(22) Esticado o talo nascendo
(23) Com o encanto guardado
(24) Jibóia – baú de encantos
(25) Jibóia – baú de encantos
(26) Jibóia branca fez de ponte
(27) Jibóia branca cara a cara
(28) Jibóia branca cara a cara
(29) Jibóia branca fez de ponte
(30) Com ela parada no meio
(31) Parada dentro da passagem
(32) Com ela parada no meio
(33) Gameleira cheia de frutas
(34) Zoando levou embora
(35) Nuvem de curica branca
(36) Com ela parada no meio
(37) Gameleira cheia de frutas
(38) Nuvem de curica branca
(39) Zoando levou embora
(40) Paxiúba cheia de frutas
(41) Nuvem de queixada branca
(42) Tan-tan queixo batendo
(43) Paxiúba cheia de frutas
(44) Nuvem de queixada branca
(45) Tantan queixo batendo
(46) O cacho apoiado no esteio
(47) Ouvindo primeiro subindo
(48) O cacho apoiado no esteio
(49) Ouvindo primeiro subindo
(50) Jabuti esticando a língua
(51) Ouvindo primeiro subindo
(52) Com ela parada no meio
(53) Jibóia – baú de encantos
(54) Jibóia branca fez de ponte
(55) Jibóia branca cara a cara
(56) Com ela parada no meio
(57) Jibóia – baú de encantos
(58) Jibóia branca fez de ponte
(59) Jibóia branca cara a cara
(60) Ouvindo primeiro subindo
(61) O cacho apoiado no esteio


O canto justapõe e recombina as unidades verbais até criar o efeito da cena total trazida pelo nixi pae. A sobreposição da pessoa do cantador à do cipó-gente, bem como o encontro subseqüente com Yube e os yuxin ("espíritos", "almas", "pessoas outras") deixam suas marcas na estrutura do canto, acima dividido segundo as unidades consagradas por Hymes (1992) em seu estudo das narrativas chinook. São elas as linhas (cujas palavras estão acima indicadas por letras e numerais minúsculos), as estrofes (indicadas em letras maiúsculas e numerais) e as cenas (em algarismos romanos). A primeira cena (compreendendo as estrofes A1, A2, B1, B2, B3) é aquela em que se visualiza a condição ambivalente do huni, como nos diz a própria expressão "huni karu" (linha 4), ao justapor "lenha (karu) do cipó/homem" a "lenha do homem". Sobrepondo o preparo da bebida alucinógena "ao preparo dos próprios homens, [convertidos em] lenha moída, sovada, e que acaba revelando o núcleo ou gomo onde guarda sua força" (Guimarães 2002:218), a cena inicial do canto mostra o huni deslocado pela nixi pae. Assim tomado pela experiência visionária – pelos passeios do aspecto excorporado de sua pessoa, de sua "alma do olho", o bedu yuxin (Kensinger 1995; Lagrou 1998) – o huni é levado a posições outras: os desenhos ou padrões (kene) que iniciam a experiência do nixi pae se convertem aos poucos em Yube, dona de todos os padrões e também xamã primordial, que em seguida devorará a pessoa.

Entramos então na cena II (estrofes C1, C2, D1, D2, E1, E2, F1, F2), na qual o canto justapõe a visualização de Yube à dos yuxin (os "espíritos" ou as "pessoas" do nixi pae) caracterizados pela cor branca (hushu). São eles a própria yube hushu, o txere hushu (o pássaro curica branca, que é a forma adquirida pelo bedu yuxin ao se desgarrar da pessoa em estados limiares) e yawa hushu (a queixada branca). O que mostra, portanto, este huni muka? A combinação de imagens, o efeito estereoscópico da sobreposição de cenas, nota Guimarães (2002:222), compõem "uma imagem do próprio espírito do olho em sua viagem pelos caminhos da miração". Imagem, porém, que corresponde à experiência imediata do cantador/locutor, isto é, de seu bedu yuxin, e não à experiência mediatizada de ouvintes submetidos a transmissões narrativas como a das akinhá xinguanas: as queixadas-itseke da narrativa Jamugikumalu, presentes na virtualidade memorial do mito, não são as mesmas que as queixadas-yuxin deste canto Kaxinawá, presentes enquanto tais para a alma do olho.

Observemos que a divisão em estrofes e cenas acima sugerida, se segue o modelo de Hymes apenas a título ilustrativo, não deve deixar de ser acompanhada de uma ressalva feita por Tedlock (1983) em seu estudo sobre narrativas Zuñi e Quiché: o arranjo das unidades do canto no instante da performance visualiza algo mais afim a uma ação dramática (como, aliás, bem notou Franchetto para as akinhá Kuikuro) do que à rígida estruturação das formas. Pois a "poesia" aí presente, acompanhando Tedlock e o poeta Charles Olson 1997 [1950], deve ser compreendida para além da limitação do verso ao discurso métrico, a fim de considerá-lo enquanto instância aberta ou projetiva capaz de comportar toda a carga do drama e das possibilidades da respiração: cantos como eventos, portanto, se vale a aproximação com certa poesia contemporânea ocidental. Eventos ou arenas que, no entanto, nada dizem de um sujeito lírico ou da criação artística auto-centrada, mas sim das ações e das experiências de cantadores que têm sua pessoa partida em múltiplos aspectos (tais como o bedu yuxin dos Kaxinawá), e assim submetidas às variações posicionais do visível e do invisível (Viveiros de Castro 1986; 2002b). O que a imagética de cantos como o huni muka nos traz é justamente aquilo que apenas cantadores cindidos em sua pessoa podem ver: o que o mito narra e rememora do invisível, cantos tais como os huni muka, por sua vez, mostram (e agem sobre)."

Boa constrictor imperator, jibóia que a cultura hunikuin identifica como Dua Busin

O texto completo deste artigo, adaptado da dissertação de mestrado de Cesarino em 2003, o leitor encontra em Mana vol.12 no.1 - Apr. 2006

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