26 de julho de 2007

Documenta Kuikuro

Aldeia Ipatse (Parque Indígena do Xingu) - Integrantes do Coletivo Kuikuro de Cinema registram a chegada de visitantes. Foto: Pedro Biondi/ABr

O fim de semana passado foi de festa na principal aldeia do povo Kuikuro ("peixinho bicudo", uma das catorze aldeias que integram o Parque Nacional do Xingu, fundado em 1961 por iniciativa dos irmãos Villas Boas). Eles, que falam o dialeto Karib, são 400 indígenas e habitam o Alto Xingu, às margens do rio Kuluene, promoveram um evento que recebeu visitantes de várias aldeias, mas não tinha a ver com o calendário tradicional da região, no norte do Mato Grosso. Comemorava a inauguração de um centro de memória e o lançamento de vídeos sobre os xinguanos ou feitos por eles.

O centro de documentação resulta de uma iniciativa da aldeia e faz parte do projeto DKK - Documenta Kuikuro, em que computadores, filmadoras, gravadores e máquinas fotográficas são instrumentos para manter a cultura. "Estamos falando de documentar uma civilização", disse o antropólogo Carlos Fausto, um dos coordenadores do projeto. "De uma densidade comparável à das civilizações antigas. Comparando, é como se a Odisséia não tivesse sido escrita e desaparecesse na tradição oral." O poema é uma das principais narrativas da Grécia Antiga.

Segundo Fausto, que é professor do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o centro tem no acervo 300 horas de gravações de narrativas, rezas e conjuntos de cantos, e conta com apoio técnico do Museu do Índio, da Fundação Nacional do Índio (Funai). "Trata-se de um gesto político de dar às comunidades indígenas a possibilidade autônoma de se apropriar da magia dos brancos: a nossa tecnologia, que tanto valorizamos", disse. "Botar a tecnologia a serviço da tradição, mas uma tradição viva, renovada."

O cacique Afukaká Kuikuro, um dos idealizadores do centro, fala à Agência Brasil: "O índio é que sabe as histórias que tinham nossos avós - como vocês, no papel. Nós, não. Guardamos toda a nossa tradição na cabeça. Agora, a gente tem canto, mas é importante neto, bisneto, saber".

No discurso, ele preferiu se pronunciar em sua língua natal (de modo geral, os habitantes dessa parte do parque entendem as línguas dos povos vizinhos). Foi traduzido pelo presidente da Associação Kuikuro do Alto Xingu, Mutiá Mehinaku-Kuikuro. A opção foi por uma casinha de alvenaria, em vez das clássicas malocas com cobertura de sapê, por segurança, justificou: "Se pegasse fogo, perderia todos materiais".

O Centro de Documentação Kuikuro é financiado pelo Subprograma Projetos Demonstrativos para os Povos Indígenas (PDPI). Coordenado pelo Ministério do Meio Ambiente, o PDPI resulta do Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil (PPG7), estabelecido na Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, a Rio-92, explica a assessora técnica do ministério Maira Smith. "O PDPI apóia propostas de iniciativa indígena em toda a Amazônia", diz Smith. "Uma das três áreas apoiadas é essa, de valorização cultural."

Segundo ela, o valor recebido pelo projeto é de R$ 99 mil, e os recursos são repassados de dois em dois meses. Ela conta que tem crescido o surgimento de iniciativas semelhantes, com cinegrafistas indígenas e documentação com vídeo.

Na Aldeia Ipatse, grande parte do material foi documentado pelo Coletivo de Cinema Kuikuro, formado por jovens da aldeia com assessoria da organização não-governamental Vídeo nas Aldeias. Imbé Gikegü - Cheiro de Pequi e Nguné Elü - O Dia em que a Lua Menstruou, duas das produções artísticas do grupo, foram exibidas em sessão na aldeia e estão disponíveis em DVD. Os cerca de 300 habitantes da aldeia e os convidados assistiram também ao primeiro episódio da série de documentários Xingu - A Terra Ameaçada, do jornalista Washington Novaes, que já havia retratado a região em uma série de documentários veiculada em 1985.

A partir de domingo agora (veja a programação completa), 29 de julho, às 18 horas, será exibido na TV Cultura o novo documentário que marca o retorno de Novaes e a mesma equipe ao Xingu. Em 1984, eles produziram a premiada série "Xingu - A Terra Mágica", exibida pela Rede Manchete no ano seguinte. Pela primeira vez, por iniciativa da produção e do jornalista, houve pagamento de direitos de imagem aos cinco grupos documentados na ocasião - Waurá, Kuikuro, Yawalapiti, Metuktire e Panará. Cada aldeia documentada na nova série recebeu R$ 30 mil. "Com o dinheiro, os kuikuros compraram um caminhão por R$ 35 mil. Ainda falta quitar os outros R$ 5 mil", conta Novaes.

Como mostra o primeiro capítulo de Xingu - A Terra Ameaçada, não só os índios kuikuros, como as demais tribos da região, vivem uma situação delicada, atualmente. Principalmente no que diz respeito aos mais jovens, pouco interessados em resguardar a sua cultura. Amunegi é filho do cacique Afukaká e um dos cinco índios cineastas de Kuikuro, autor dos documentários Cheiro de Pequi (2006) e O Dia em Que a Lua Menstruou (de 2004, exibido no ‘dia do índio’ de 2006 na mostra Vídeos e Realizadores Indígenas, do Itaú Cultural). Enquanto Amunegi conversava com a reportagem do Estado, a Dança do Papagaio era apresentada. O significado dela? "Não sei, pergunta para o meu pai, ele é quem sabe tudo", respondeu.

A ameaça de devastação cultural cresce num ritmo alucinante. Por meio da televisão e com as constantes viagens a grandes cidades para apresentarem alguns de seus rituais, eles têm acesso à tecnologia que faz brilhar tanto olhos brancos quanto olhos indígenas. Os jovens índios querem DVDs, CDs para seus aparelhos de som e discman, óculos escuros, roupas modernas, motocicletas. "Você tem MSN? E Orkut?" foi o que primeiro perguntou Janapa, de 20 anos, logo após se apresentar. O ponto de internet na aldeia Ipatse está previsto para ser inaugurado somente em setembro, mas os jovens índios acessam o mundo virtual a cada visita às cidades.

No novo documentário de Novaes, comparações são feitas com o Xingu de 1984. O lixo gerado pelos índios e a importância dada ao dinheiro são dois dos fatores focados em Xingu - A Terra Ameaçada. Hoje, eles produzem artesanato para vender para os brancos, em larga escala. Um dos ‘produtos’ mais nobres utilizado como adorno e comercializado pelos índios kuikuros é o colar de caramujo. Por já ter-se tornado escasso na região do Alto Xingu e dependendo da largura das finas tiras (semelhantes à madrepérola), um colar pode chegar a custar R$ 500. Ele serve, inclusive, como moeda de troca no casamento: é comum o marido oferecer um colar de caramujo ao seu sogro, em forma de agradecimento pela concessão da mão de sua filha.

O problema da escassez, em parte, foi resolvido há algum tempo. Novaes conta que os índios do Xingu estabeleceram intercâmbio com os pataxós, na Bahia. "Eles enviam penas de aves para os pataxós e recebem deles caramujos, através do programa Arte Índia, em Brasília", conta. A surpresa fica por conta dos coloridos colares usados pelas índias kuikuros. As miçangas que preenchem mais de cem voltas de cada colar vêm da Rua 25 de Março, de São Paulo. O índio Pelé conta que chegou até a discutir com o dono de uma loja que queria vender as miçangas verdes por um preço maior que as demais, sendo que vinham na mesma quantidade. "Quis dar uma de esperto", desabafa o pai de sete filhos kuikuros.

Na noite de sábado, enquanto eram exibidos os documentários em um imenso telão montado no centro da aldeia, a adolescente índia Maíra escutava, em seu discman, músicas do grupo RBD, produto da novela mexicana Rebelde. Quem a presenteou foi o filho de uma indianista, que há algum tempo trabalha com a tribo. "É o que podemos chamar de ‘nova invasão branca’", define Novaes. No ano passado, enquanto filmavam Xingu - A Terra Ameaçada, se depararam com uma situação, no mínimo, bizarra: a rede britânica BBC levou três lutadores (de jiu-jitsu, full contact e um fisiculturista) para lutarem com os índios no Huka-Huka, tradicional combate corpo-a-corpo dos xinguanos. "Eles justificaram que ‘não poderíamos impedir o contato dos índios com outras culturas’", lembra Novaes.

Mahajugi, mais conhecido por Jairão, também engrossa o coro dos jovens índios encantados pela falsa estabilidade branca. Se tivesse condições, não pensaria duas vezes em se mudar de vez para a cidade. "É que lá temos de pagar por aluguel, comida, transporte. Fica tudo mais difícil", diz. Deixou três namoradas no Rio, onde morou durante um ano, e a filha Mayara, de 1 ano, que teve com uma carioca. "Gosto de mulher branca. E vou me casar com uma."

Novaes, de 73 anos, sendo 50 de jornalismo, conta que vez por outra um índio liga para sua casa em Goiânia para pedir ajuda. "Eles chegam até a cidade, mas não têm como se sustentar. Recebo-os em casa, ofereço comida, envio R$ 100."

Bóia-fria, mendigo ou alcoólatra são os três fatídicos e invariáveis destinos dos índios que tentam a vida fora da aldeia, pois não apresentam qualificação para o mercado. Também é notado um alto índice de suicídio em diversas etnias localizadas no Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. A ameaça ‘de fora para dentro’, com a construção de hidrelétricas e extensos terrenos destinados à plantação de soja, desassossega na mesma intensidade que a ameaça ‘de dentro’, sofrida pelos índios internamente. "Temos de parar de ver o índio como um ser exótico. A democracia do consenso indígena, que tem o cacique como mediador e não como autoridade, aponta em direção às utopias humanas. Só por esse motivo já deveríamos aprender a proteger essa sociedade. Temos muito o que (re)aprender com ela", sentencia o jornalista.

Fonte: Lívia Deodato (jornal O ESTADO DE SÃO PAULO)

Pai e filho Kuikuro em foto de Rogério Salgado

Veja: Galeria de Fotos dos Kuikuro por Wilian Cézar Aguiar, e Galeria de Fotos de Tiago Queiroz no Estadão. Imperdíveis!

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