16 de setembro de 2007

Direitos dos Povos Indígenas afirmados na ONU

A Assembléia Geral da ONU aprovou no dia 13 de setembro, após duas décadas de negociações, a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, que protegerá as mais de 370 milhões de pessoas que integram estas comunidades vulneráveis do mundo. O texto, aprovado por 143 votos, contra quatro, com 11 abstenções, constitui um marco histórico para o movimento indígena, que durante anos tentou fazer aprovar este texto nas Nações Unidas. Os quatro votos contra foram dos Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia.

A declaração, de 46 artigos, estabelece os padrões mínimos de respeito pelos direitos dos povos indígenas do mundo, que incluem a propriedade das suas terras, acesso aos recursos naturais dos seus territórios, preservação dos seus conhecimentos tradicionais e autodeterminação. O embaixador adjunto do Peru na ONU, Luís Enrique Chavez, que apresentou o documento ao plenário da Assembleia Geral, sublinhou que a organização tinha agora a «oportunidade e a responsabilidade» de "prencher um vazio" no âmbito da proteção dos direitos humanos. "Trata-se da proteção de um grupo de seres humanos que, como testemunham os diferentes mecanismos de proteção dos direitos humanos, se conta entre os mais vulneráveis", acrescentou.

Todavia, o embaixador da Austrália, Robert Hill, declarou na sua intervenção que o seu país votava contra porque são atribuídos direitos às populações indígenas que entram em conflito com os do resto da população e com as normas constitucionais dos países democráticos. "A Austrália manifestou a sua oposição ao uso do termo autodeterminação, que está sobretudo relacionado com situações de descolonização. Não podemos apoiar um texto que põe em perigo a integridade territorial de um país democrático", afirmou. O Canadá sublinhou também que o documento não se adequa à sua legislação em matérias como a propriedade de terras, a sua exploração ou as forças armadas. "Há que conseguir um equilíbrio entre estes direitos dos povos indígenas, o Estado e as terceiras pessoas", referiu o embaixador canadense na ONU, John McNee.

Por seu turno, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, saudou a adoção da declaração de direitos e instou os Estados membros a "garantirem que a sua visão seja posta em prática", disse a sua porta-voz, Michele Montás. A declaração garante aos povos indígenas o direito de participar nas decisões do Estado sobre questões que afetam diretamente a eles, como educação, propriedade da terra e saúde. 'Os povos indígenas têm o direito de participar da tomada de decisão sobre assuntos que afetam seus direitos, através de representantes escolhidos por eles mesmos de acordo com procedimentos próprios, bem como o direito de manter e desenvolver suas próprias instituições de tomdada de decisão', diz o documento.

Parágrafos preambulares de uma minuta que serviu de base à Declaração nos permitem uma visão preliminar do novo documento da ONU, cujo teor completo ainda não foi difundido:

1 - Afirmando que todos os povos indígenas são livres e iguais em dignidade e direitos, de acordo com as normas internacionais, e reconhecendo o direito de todos os indivíduos e povos de serem distintos e de considerarem-se distintos, e serem respeitados como tais;

2 - Considerando que todos os povos contribuem para a diversidade e a riqueza das civilizações e culturas, as quais constituem patrimônio comum da humanidade;

3 - Convencidos de que todas as doutrinas, políticas e práticas de superioridade racial, religiosa, étnica ou cultural são cientificamente falsas, legalmente inválidas, moralmente condenáveis e socialmente injustas;

4 - Preocupados com o fato de os povos indígenas terem sido freqüentemente privados de seus direitos humanos e liberdades fundamentais, tendo como resultado a perda de suas terras, territórios e recursos, assim como a pobreza e a marginalização;

5 - Celebrando o fato de que os povos indígenas estão se organizando para pôr fim a todas as formas de discriminação e opressão onde quer que ocorram;

6 - Reconhecendo a urgente necessidade de promover e respeitar os direitos e características dos povos indígenas, que se originam em sua história, filosofia, culturas, tradições espirituais e outras, assim como em suas estruturas políticas, econômicas e sociais, especialmente seus direitos a terras, territórios e recursos;

7 - Reafirmando que os povos indígenas, no exercício de seus direitos, deveriam ver-se livres de discriminação adversa de todo tipo;

8 - Respaldando os esforços para consolidar e fortalecer as sociedades, culturas e tradições dos povos indígenas, através de seu controle sobre os processos de desenvolvimento que afetem a eles ou às suas terras, territórios e recursos;

9 - Enfatizando a necessidade da desmilitarização das terras e territórios dos povos indígenas, o que contribuirá para a paz, a compreensão e as relações amistosas entre os povos do mundo;

l0 - Enfatizando a importância de dar especial atenção aos direitos e necessidades das mulheres, jovens e crianças indígenas;

11 - Convencidos de que os povos indígenas têm o direito de determinar livremente suas relações com os Estados nos quais vivem, num espírito de coexistência com outros cidadãos;

12 - Ressaltando que os Convênios Internacionais sobre os Direitos Humanos afirmam a fundamental importância do direito à autodeterminação, assim como o direito de to. dos os seres humanos de procurar seu desenvolvimento material, cultural e espiritual em condições de igualdade e dignidade;

13 - Tendo em conta que nada nesta Declaração pode ser usado como justificativa para negar a qualquer povo seu direito à autodeterminação;

14 - Conclamando os Estados a cumprir e implementar efetivamente todos os instrumentos internacionais aplicáveis aos povos indígenas;

15 - Solenemente proclamamos a seguinte Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas:

Parte 1:

1 - Os povos indígenas têm o direito à autodeterminação, de acordo com a lei internacional. Em virtude deste direito, eles determinam livremente sua relação com os Estados nos quais vivem, num espírito de coexistência com outros cidadãos, e livremente procuram seu desenvolvimento econômico, social, cultural e espiritual em condições de liberdade e dignidade.

2 - Os povos indígenas têm o direito ao pleno e efetivo desfrute de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais reconhecidos na Carta das Nações Unidas e outros instrumentos internacionais de direitos humanos.

3 - O povos indígenas têm o direito de serem livres e iguais a todos os outros seres humanos em dignidade e direitos, e de serem livres de distinção ou discriminação adversa de qualquer tipo baseada em sua identidade indígena.

Parte II:

4 - Os povos indígenas têm o direito coletivo de existir em paz e segurança como povos distintos e de serem protegidos contra o genocídio, assim como os direitos individuais à vida, integridade física e mental, liberdade e segurança da pessoa.

5 - Os povos indígenas têm o direito coletivo e individual de manter e desenvolver suas características e identidades étnicas e culturais distintas, incluindo o direito à auto -identificação.

6 - Os povos indígenas têm o direito coletivo e individual de serem protegidos do genocídio cultural, incluindo a prevenção e a indenização por:

a) qualquer ato que tenha o objetivo ou o efeito de privá-los de sua integridade como sociedades distintas, ou de suas características ou identidades culturais ou étnicas;

b) qualquer forma de assimilação ou integração forçadas;

c) perda de suas terras, territórios ou recursos;

d) imposição de outras culturas ou formas de vida;

e) qualquer propaganda dirigida contra eles.

7 - Os povos indígenas têm o direito de reviver e praticar sua identidade e tradições culturais, incluindo o direito de manter, desenvolver e proteger as manifestações de suas culturas, passadas, presentes e futuras, tais como os sítios e estruturas arqueológicas e históricas, objetos, desenhos, cerimônias, tecnologia e obras de arte, assim com o direito à restituição da propriedade cultural, religiosa e espiritual retiradas deles sem seu livre e informado consentimento ou em violação às suas próprias leis.

8 - Os povos indígenas têm o direito de manifestar, praticar e ensinar suas próprias tradições espirituais e religiosas, costumes e cerimônias; o direito de manter, proteger e ter acesso em privacidade aos sítios religiosos e culturais; o direito ao uso e controle de objetos cerimoniais; e o direito à repartição de restos humanos.

9 - Os povos indígenas têm o direito de reviver, usar, desenvolver, promover e transmitir às futuras gerações suas próprias línguas, sistemas de escrita e literatura, e designar e manter os nomes originais de comunidades, lugares e pessoas. Os Estados tomarão medidas para assegurar que os povos indígenas possam atender e serem entendidos nos procedimentos políticos, legais e administrativos, quando seja necessário, através da provisão de intérpretes ou outros meios efetivos.

10 - Os povos indígenas têm o direito a todas as formas de educação, incluindo o acesso à educação em suas próprias línguas, e o direito de estabelecer e controlar seus próprios sistemas educacionais e institucionais. Os recursos serão proporcionados pelo Estado para estes propósitos.

11 - Os povos indígenas têm o direito à dignidade e à diversidade de suas culturas, histórias, tradições e aspirações refletidas em todas as formas de educação e informação públicas. Os Estados tomarão medidas efetivas para eliminar os preconceitos e fomentar a tolerância, entendimento e boas relações.

12 - Os povos indígenas têm o direito ao uso e acesso a todas as formas de meios massivos de comunicação em suas próprias línguas. Os Estados tomarão medidas efetivas para alcançar este fim.

13 - Os povos indígenas têm o direito a uma adequada assistência financeira e técnica, por parte dos Estados e, através da cooperação internacional, de procurar livremente seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural, e para o gozo dos direitos contidos nesta Declaração.

(Parágrafo operativo a ser numerado) : Nada nesta Declaração pode ser interpretado no sentido de implicar para qualquer Estado, grupo ou indivíduo o direito de empreender quaisquer atividades ou realizar quais. quer atos contrários à Carta das Nações Unidas ou à Declaração Internacional de Princípios de Direitos Sobre Relações Amistosas e Cooperação entre os Estados de acordo com a Carta das Nações Unidas.

Parte III:

14 - Os povos indígenas têm o direito de manter sua distintiva e profunda relação com suas terras, territórios e recursos, os quais incluem o total ambiente da terra, água, ar e mar, que eles tradicionalmente ocupam ou usam de outra maneira.

15 - Os povos indígenas têm o direito coletivo e individual de possuir, controlar e usar as terras e territórios que eles têm ocupado tradicionalmente ou usado de outra maneira. Isto inclui o direito ao pleno reconhecimento de suas próprias leis e costumes, sistemas de posse da terra e instituições para o manejo de recursos, e o direito a medidas estatais efetivas para prevenir qualquer interferência ou abuso destes direitos.

16 - Os povos indígenas têm o direito à restituição, e na medida em que isto não seja possível, a uma justa ou equitativa compensação pelas terras e territórios que hajam sido confiscados, ocupados, usados ou sofrido danos sem seu livre e informado consentimento. A menos que se acorde livremente outra coisa pelos povos envolvidos, a compensação tomará preferivelmente a forma de terras e territórios de qualidade, quantidade e status legal pelo menos iguais àqueles que foram perdidos.

17 - Os povos indígenas têm o direito à proteção de seu ambiente e à produtividade de suas terra e territórios, e o direito à assistência adequada, incluindo a cooperação internacional para este fim. A menos que outra coisa seja acordada livremente pelos envolvidos, as atividades militares e o armazenamento ou depósito e de materiais perigosos não poderão ser feitos em suas terras e territórios.

18 - Os povos indígenas têm o direito a medidas especiais de proteção, como propriedade intelectual, de suas manifestações culturais tradicionais, como a literatura, desenhou, artes visuais e representativas, cultos, conhecimentos médicos e conhecimento das propriedades úteis da fauna e da flora.

(Parágrafo operativo a ser numerado): Nenhum dos povos indígenas poderá, em nenhum caso, ser privado de seus meios de subsistência.

Parte IV:

18 - "O direito de manter e desenvolver, dentro de suas áreas de terras e outros territórios, suas estruturas econômicas, instituições e modos de vida tradicionais, de ter asseguradas suas estruturas econômicas e modos de vida tradicionais, de ter assegurado o desfrute de seus próprios meios de subsistência tradicionais, e de dedicar-se livremente às suas atividades econômicas tradicionais e outras, incluindo a caça, pesca de água doce e salgada, pastoreiro, coleta, corte de árvores e cultivos, sem discriminação adversa. Em nenhum caso pode um povo indígena ser privado de seus meios de subsistência. Eles têm o direito a uma justa e equitativa compensação pelos bens de que foram privados".

19 - "O direito a medidas estatais especiais para a melhoria imediata, efetiva e continua de suas condições sociais e econômicas, com seu consentimento, que reflitam suas próprias prioridades".

20 - "O direito de determinar, planejar e implementar todos os programas de saúde, moradia e outros programas sociais e econômicos que os afetem e, na medida do possível, desenvolver, planejar e implementar tais programas através de suas próprias instituições".

Parte V:

21 - "O direito de participar em pé de igualdade com todos os outros cidadãos e, sem discriminação adversa, na vida política, econômica, social e cultural do Estado, e de ter seu caráter específico devidamente refletido no sistema legal e nas instituições políticas, sócio - econômicas e culturais, incluindo, em particular, uma adequada consideração e reconhecimento das leis e costumes indígenas".

22 - "O direito de participar plenamente nas instituições do Estado, através de representantes eleitos por eles mesmos, na tomada de decisões e na implementação de todos os assuntos nacionais e internacionais que possam afetar seus direitos, vida e destino".

"(b) O direito dos povos indígenas de participar, através de procedimentos apropriados, determinados em conjunto com eles, na concepção de leis ou medidas administrativas que possam afetá-los diretamente, e de obter seu livre consentimento através da implementação de tais medidas. Os Estados têm o dever de garantir, o pleno exercício desses direitos".

23 - "O direito coletivo à autonomia em questões relativas a seus próprios assuntos internos e locais, incluindo a educação, informação, meios de divulgação, cultura, religião, saúde, moradia, bem-estar social, atividades econômicas e administrativas de terras e recursos e o meio ambiente, assim como gravames impositivos internos para financiar estas funções autônomas".

24 – "O direito de decidir sobre as estruturas de suas instituições autônomas, seleção dos membros de tais instituições de acordo com seus próprios procedimentos, e determinar os membros dos povos envolvidos para estes propósitos; os Estados têm o dever, onde assim o queiram os povos envolvidos, de reconhecer tais instituições e seus membros, através dos sistemas legais e instituições políticas do Estado".

25 - "O direito de determinar as responsabilidades dos indivíduos com suas próprias comunidades, coerentes com os direitos humanos e liberdades fundamentais universalmente reconhecidos".

26 - "O direito de manter e desenvolver contatos, relações e cooperações tradicionais, incluindo intercâmbio cultural, social e comercial, com seus próprios parentes e amigos, através das fronteiras estatais e a obrigação de o Estado adotar medidas para facilitar tais contatos".

27 - "O direito de exigir que os Estados cumpram os tratados e outros acordos concluídos com os povos indígenas, e de submeter qualquer disputa que possa surgir nesta matéria a instâncias competentes, nacionais ou internacionais".

Parte VI:

28 - "O direito coletivo e individual de acesso e pronta decisão a procedimentos justos e mutuamente aceitáveis para resolver conflitos ou disputas e qualquer infração, pública ou privada, entre os Estados e os povos, grupos ou indivíduos indígenas. Estes procedimentos deveriam incluir, como for apropriado, negociações, mediação, arbitragem, cortes nacionais e revisão e mecanismos de apelação sobre direitos humanos, regionais e internacionais".

Parte VII:

29 - "Estes direitos constituem as normas mínimas para a sobrevivência e o bem-estar dos povos indígenas do mundo".

30 - "Nada desta Declaração pode ser interpretado no sentido de implicar para qualquer Estado, grupo ou indivíduos, o direito de empreender qualquer atividade ou realizar qualquer ato destinado à destruição de qualquer dos direitos e liberdades aqui estabelecidos".


Quanto à situação dos povos ameríndios no Brasil, em "Direitos dos povos indígenas: conquistas e desafios", Chica Picanço explica que:

"O Brasil é uma nação constituída por uma diversidade de Povos com histórias, saberes, tradições, culturas e línguas próprias. Fazem parte dessa realidade os povos indígenas que somam, segundo o ultimo levantamento do Instituto Brasileiro Geográfico e Estatístico (IBGE) , de 2000 aproximadamente 701.462 mil pessoas. São mais de 230 povos falando cerca de 180 línguas indígenas diferentes. Os povos indígenas, desde a época da colonização e até muito recente, foram considerados como obstáculos para o desenvolvimento do país. Até hoje suas terras continuam sendo invadidas, sofrem de doenças como malária, hepatite, e as suas crianças morrem de fome e desnutrição. Com a educação também não é diferente. As escolas para os índios não respeitam os seus sistemas próprios de aprendizagem e suas formas de transmissão de conhecimentos necessários à sobrevivência dos povos indígenas.

Os índios foram os primeiros povos originários desta terra. Mesmo tendo uma cultura e línguas diferenciadas da sociedade nacional, fazem parte dela e gozam dos mesmos direitos que ela. Entretanto, devido ao fato de serem diferentes, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, ordenou um capítulo específico para os índios. Pela primeira vez, o governo brasileiro reconhece no artigo 231 da Constituição, sua organização social, costumes, línguas, crenças e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, protegê-las e fazer respeitar todos os seus bens. No Congresso Nacional tramita um Projeto de Lei nº 6.001/73 denominado “Estatuto dos Povos Indígenas” que visa garantir a proteção e defesa dos direitos indígenas. Entretanto, as lideranças e organizações indígenas consideram que esse Projeto precisa ser revisto necessitando de algumas alterações importantes como, por exemplo, a proteção dos conhecimentos tradicionais, do direito à posse coletiva das terras, a adequação dos sistemas de educação, saúde e a sua cultura, entre outras demandas. Até hoje essa Lei não foi modificada e aprovada, causando assim grandes prejuízos para os povos indígenas".

Fonte: Diário Digital . Ler mais a respeito em Direitos Humanos na Internet - DHNET.

A voz do pajé

Lago Sagrado dos índios Xavantes, na Reserva de Parabubure, localizada nos municípios de Nova Xavantina e Campinápolis, no Estado de Mato Grosso. Foto de Mário Friedländer.

“Meu mundo não é só minha aldeia. Não é só Mato Grosso. Não é só o Brasil. Meu mundo é a Terra. É a Mãe Natureza”, disse o pajé Xavante da reserva Parabubure, em Campinápolis, José Luiz Tsereté, num puxão de orelhas aos políticos, que segundo ele protegem apenas determinadas áreas, sendo que a proteção não pode conhecer limites e tem que ser feita no campo, nas matas, nos rios, nos mares e cidades. (Diário de Cuiabá, Edição nº 11287 07/08/2005).

Tsereté é um Pajé do Povo Xavante. Nas comunidades indígenas, o Pajé representa a autoridade espiritual e o depositário do saber sobre o contato com o divino, a saúde e a vivência da espiritualidade. Situada ao leste de Mato Grosso, a Serra do Roncador, em torno da qual vivem os Xavante, é um lugar sagrado, guardado pelo Pajé Tsereté.

O Povo Xavante, conhecido por sua valentia e espírito nobre, tem sua cultura construída na interdependência com o cerrado e toda a vida que ele guarda. O cerrado, os animais, os frutos, as flores, as ervas, os rios e tudo o mais significa o Ró. Através do Ró, o futuro das novas gerações é garantido: a comida, os casamentos, os rituais e a força de ser Xavante. O Ró é assim: a aldeia, circundada pela roça, em volta as frutas, depois a caça, junto com os espíritos, que ajudam a descobrir os segredos que o Ró esconde. Mais longe, o céu e a outra aldeia onde moram os mortos. A destruição do cerrado é, ao mesmo tempo, uma ameaça ao futuro da cultura Xavante.

O CD Tsereté foi produzido pela Aldear Assessoria, Planejamento e Projetos, uma organização civil sem finalidade lucrativa, cujo objetivo é apoiar, através de produção cultural, ações empreendidas por povos indígenas brasileiros para revitalizar e preservar sua cultura e diversidade étnica.

A Aldear acredita que as músicas tradicionais dos povos indígenas são fundamentos de sua identidade social e étnica. A música, para todos os povos, é instrumento de contato espiritual com o divino, de culto à natureza e seus fenômenos, de brincadeiras e integração social. Contato: aldear@onix.com.br, Telefax (61)33491954.

Para ouvir algumas músicas do cd de Tsereté, clique em:

Dapraba - mp3 2682 Kb - "Canto dos jovens" - Voz: Pajé Tsereté.

Mara Wa Wa Dahôré - mp3 3439 Kb - "Canto da noite" - Voz: Pajé Tsereté.

Wai Wá - mp3 2554 Kb - "Segredo dos homens sagrados" - Vozes, chocalho e maracá: Pajé Tsereté e Guardião Paridzanedi.

Fonte: Music Express . Também é interessante ler "Entre cosmologias, estratégias e performances: Incursões Xavantes à Funai", de Estêvão Rafael Fernandes.

Aldeia Xavante Córrego da Mata - Foto: Wéré' é

12 de setembro de 2007

A Cultura do Iagé ameaçada no território Cofán

Preparação tradicional do iagé (Banisteriopsis caapi + Diplopterys cabrerana)

A Guerra contra as Drogas na Colômbia, financiada pelos Estados Unidos da América, está atingindo o cerne da cultura da nação cofán, destruindo com suas fumigações também as plantas sagradas por eles utilizadas para a preparação do iagé ou ayahuasca. Partindo da história recente do povo cofán, o Transnational Institute de Amsterdam, Holanda, publicou este mês um documento onde busca mostrar como, sob o manto de uma guerra antiterrorista e antidroga, se estão assegurando grandes interesses econômicos no Baixo Rio Putumayo. O paramilitarismo tem sido o principal aliado dos grandes investidores, das empresas, e da força pública, e segue tão presente em 2007 como antes de sua desmobilização. No Informativo "Coca, petróleo y conflicto en territorio cofán", Moritz Tenthoff trata dos impactos que têm produzido sobre esta comunidade ancestral os cultivos de coca, a atividade petroleira, e os desenvolvimentos do conflito armado em território cofán:

"O povo cofán tem sido por mil anos um povo tomador de iagé e nas comunidades cofán não existe um consumo generalizado da hoja de coca. Os primeiros cultivos de coca começaram a ser vistos nos anos setenta do século passado, e apareceram junto com uma colonização de território ligada a interesses do petróleo. Muitos dos contratos no setor petroleiro eram temporários, de modo que os trabalhadores tinham que buscar fontes alternativas de ingressos, para o qual se recorria à semeadura de coca. (...)

De acordo com os próprios cofán a introdução da coca mudou grande parte da cultura e das formas de produção dentro das comunidades. A dependência do dinheiro repercutiu na diminuição da produção de cultivos de subsistência, e introduziu uma mentalidade ‘de homem branco’, onde vigoram mais o materialismo e o individualismo. A chegada dos cultivos ilícitos incrementou, além disso, a colonização dentro das reservas, e destruiu grande parte da reserva forestal. Os herbicidas usados na produção da coca e os produtos químicos usados na produção da pasta-base e o cloridrato que se derrama nos rios, tem ocasionado efeitos negativos sobre a saúde humana, a fauna e a qualidade da água. Com os cultivos de coca e o narcotráfico chegaram também a insurgência e os grupos paramilitares que financiam suas atividades em parte com o negócio da coca e da pasta-base, dando pé ao início de uma intensa guerra antinarcóticos na área. (...)

A cosmovisão e cultura dos cofán está estreitamente vinculada às cerimônias de toma do iagé. Como conseqüência das fumigações e da erradicação, as plantas sagradas e medicinais foram reduzidas nas reservas cofanes nos últimos anos. Os erradicadores cortaram o cipó do iagé e as fumigações secaram e destruíram também várias plantas complementares do iagé. Além disso as cerimônias já não podem ser feitas com tranquilidade devido a contaminação, o barulho, o meio ambiente violentado e a presença de grupos armados."

Diante desse cenário de etnocídio, assim vêm se pronunciando os anciãos da tribo:

"Para nós os Cofán nosso principal valor é a vida e a possibilidade de existir neste mundo como um povo, com uma cultura, uma língua, um pensamento, alguns costumes, algumas tradições diferentes e alguns bens espirituais próprios e vivos baseados em uma ciência milenar que nos orienta no viver diário e que nos permite dirigir o rumo de nossas vidas.

Nos apresentamos como um Povo de Sabedores: com nossos Taitas e sua sabedoria, oferecemos à humanidade o conhecimento sobre plantas medicinais, nossa capacidade de curar enfermidades corporais e espirituais, nossa generosidade sem fronteiras, nossa humildade, nossas esperanças e nossa experiência de desenvolvimento comunitário orientado pelo pensamento indígena.(...)

Agora já despertamos, abrimos os olhos para esta realidade e somos conscientes da situação que nos aflige, conhecemos a origem, as causas, as conseqüências de nossos problemas, e a necessidade de resolvê-los antes que eles acabem con nosso povo".

Fontes: SODEPAZ e Kesselberg Info . Leiam também, de Roberto Otero, o artigo "La Medicina Tradicional Kofán", na revista Visión Chamánica.

11 de setembro de 2007

Vozes Indígenas no Brasil

Pintura de Deuseni Félix - "Etnia Kayapó"

A Rádio Nederland, emissora internacional da Holanda, enviou às aldeias ameríndias brasileiras os jornalistas Mário de Freitas e Railda Herrero para gravarem uma série de programas dentro de um projeto intitulado "Vozes Indígenas no Brasil". Os primeiros resultados dessas gravações estão em dez programas, lançados em CD e também disponíveis para download. Foram concedidas, com muita atenção, pelos representantes dos 235 povos originários, que sobrevivem no Brasil, e feitas graças ao carinho e dedicação de dezenas de trabalhadores solidários com esta causa. Os programas são desenvolvidos por temas. Muitas histórias não couberam no formato definido por programadores de rádio e esperam por novos resgates. Esta série é apenas um começo. Mas é também um complemento a uma tarefa que vem sendo cumprida por muitos, e, felizmente, agora pelos próprios indígenas. Este programa recebeu o Prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos em 2005.


Programa 1 - Diversidade étnica


O Brasil é um mosaico com 235 povos indígenas diferenciados. O microfone da Rádio Nederland não se abriu para todos, pela dificuldade geográfica e de tempo. Mas foi a diferentes rincões para dar uma amostra da diversidade étnica de nosso país. Nestas aldeias, comunidades, assembléias etc. os entrevistados de diferentes etnias falaram sobre seus povos, seus mundos, seus problemas, comparando presente e passado. Expressaram-se em suas línguas e em português, derrubando estereótipos e provando que não há um índio genérico. São povos diferenciados que, apesar da discriminação histórica, têm orgulho de ser e resistir e estão com os olhos puxados na direção de um país que precisa enxergar a importância da diferença. Ouça o programa

Programa 2 - Línguas indígenas

Troncos Tupi, Macro-Jê. Famílias Tupi-Guarani, Jê, Aruak, Tukano. Línguas gerais, línguas ameaçadas, línguas isoladas. Dúvidas, confusões lingüísticas, influência no modo de falar brasileiro. Para falar de tronco que não seja de árvore, de família, que não seja a própria, o microfone foi ao Laboratório de Línguas da UNB, e se abriu ao maior especialista em línguas indígenas no Brasil: o professor Aryon Dall´Igna Rodrigues. Auxiliado por dezenas de falantes, o pesquisador da Universidade de Brasília decifrou grupos e subgrupos, falou sobre classificações e ainda sobre a fascinante aventura de viajar no conhecimento das línguas indígenas de nosso território.

O mais antigo especialista no assunto não se esqueceu de falar até da importância do príncipe holandês, responsável pelos primeiros registros escritos sobre línguas antigas do Nordeste. O toponimista Benedito Prézia auxiliou na ida à raiz de alguns problemas, para acabar com o falso mito de que há apenas uma língua indígena em nosso país. Representantes de comunidades, desde a Amazônia até o Nordeste, mostraram as diferenças nas falas e o trabalho do resgate da própria língua, às vezes adormecida nas mentes dos mais idosos, pelo medo do silêncio imposto pelos dominadores de plantão. Ouça o programa

Programa 3 - Terra

Quantas terras indígenas há no Brasil? Quantas estão demarcadas? Quem disse que os povos indígenas têm muita terra? Comparando terras indígenas e grandes fazendas, este programa fala de um problema histórico largo e fundo: latifúndio. O Brasil é um triste líder mundial na concentração de terras nas mãos de latifundiários e a extensão utilizada para agricultura é mínima. No entanto, elevam-se discursos para impedir a garantia do território dos povos originais.

Neste programa, lideranças de diferentes regiões falam da cobiça e da violência para roubar a terra, um bem fundamental para a garantia da sobrevivência física e da cultura desses povos diferenciados. Os números históricos comprovam e reprovam a política oficial de terras no Brasil. Os depoimentos sobre essa espoliação complementam o quadro manchado pelo sangue das vítimas dessa guerra. Ouça o programa

Programa 4 - Plantando desertos verdes

Pau Brasil, jatobá, catolé, palmeira, pequi, palmito, caju, ingá, carnaúba e tantas outras espécies que garantem a diversidade das matas brasileiras vão ao chão enquanto se ouve este programa. Depoimentos de atingidos pela indústria da monocultura mostram essa derrubada para dar lugar ao capim, à soja e ao eucalipto que alimenta fornalhas de multinacionais da celulose.

A desertificação verde, ou derrubada de matas nativas para plantio de monoculturas, que destroem as culturas, é retratada por indígenas que sofrem os efeitos dessas plantações extensivas. Cooperantes e analistas confirmam o quadro da devastação ambiental, em detrimento do lucro da indústria e do agronegócio. Ouça o programa
.
Programa 5 - Direitos

Constituição, Estatuto do Índio, Direitos indígenas, Autonomia, Direitos violados, violência, impunidade. Advogados indigenistas e indígenas discorrem sobre o quadro jurídico em que se inserem os povos indígenas nos dias atuais. Apesar da discriminação, do preconceito e da falta de justiça, vozes das aldeias recitam de cor os números das leis violadas no país.

Cada vez mais conscientes de seus direitos, falam sobre a busca por mais informação e formação. E falam porque não desistem nem mesmo diante de injustiças e impunidades, como os casos dos assassinatos de Galdino Pataxó, Marçal Tupã´I e tantos outros. Ouça o programa
.
Programa 6 - Injustiça na terra do sol

A terra Indígena Raposa Serra do Sol, no nordeste de Roraima, tornou-se um caso emblemático de injustiça contra povos indígenas. Esperando mais de sete anos por um decreto, para homologar a demarcação, os Makuxi, Wapixana, Taurepang, Patamona e Ingaricó, que vivem nas mais de 150 comunidades nessa região da serra criada pelo ancestral Makunaíma, contam a batalha para reverter a moeda de troca política que se tornou a área deles.

Roraima é o último portal da soja, que devastou áreas indígenas do Mato Grosso do Sul, subindo a oeste, em todos os estados constantes no mapa brasileiro. A terra criada por Makunaíma, filho do sol e avô dos Makuxi é um exemplo de como a cobiça pode tentar impedir sonhos. Mas, nem mesmo os atentados, os incêndios e as ameaças param os descendentes de Makunaíma.

Na Aldeia Maturuca, a Brasília da região, eles contam as batalhas vencidas contra a cachaça trazida pelo branco. E falam da esperança de que a justiça indígena vença. As decisões que mudaram a vida na área, a organização para combater desmandos e outras histórias são contadas por estes povos no embalo dos forrós, compostos pelos artistas locais, para animar a campanha pela regularização da terra. Ouça o programa

Programa 7 - Educação e saúde

O direito à educação diferenciada está na Constituição. No entanto, na prática, a história é outra. E, quando o assunto é saúde, a situação não é diferente. O quadro negro está cheio de faltas na educação. Quem fala sobre o tema são educadores indígenas que, apesar de todas as dificuldades, não desistem.

Batalham para colocar em prática programas diferenciados e recebem prêmios por esta dedicação, como na Aldeia de Caarapó, no Mato Grosso do Sul. Experiências novas estão se somando para escrever uma nova página sobre educação indígena, onde a evasão escolar vem sendo trocada pelo aprender com prazer, quando há respeito à cultura e à tradição.

A saúde está intimamente ligada ao berço da cultura, a terra, chão gerador de frutos. Com esta visão, diversos agentes de saúde indígenas se queixam dos problemas locais e ouvem explicações para a falta de sucesso no tratamento a esta questão por instâncias governamentais em diferentes gestões administrativas. Ouça o programa
.
Programa 8 - Violência

Os rastros da violência histórica estão presentes em diferentes comunidades indígenas. De uma população original estimada em cerca de cinco milhões sobrevivem aproximadamente 730 mil em nosso território. Desnutrição, fome, alcoolismo, assassinato de lideranças, roubo de terras e suicídios são assuntos de representantes de diversas comunidades de norte a sul do Brasil neste programa. Do Nordeste, os Pankararu e Xukuru falam sobre violências históricas e recentes. E os Pataxó falam sobre o tema, presente desde a chegada de Cabral.

No Mato Grosso do Sul o microfone da reportagem registrou o lamento pela morte de crianças por desnutrição aguda. Nesse estado, os Guarani e estudiosos tentam explicar fenômenos enigmáticos: o suicídio e o sentimento de "ser um suicidado", por causa da falta de condições de viver de acordo com a própria cultura. Quando o assunto é um enigma relacionado ao suicídio, o caso dos Zuruahã é analisado por especialista. Pessoas dessa etnia decidem quando é a hora de ir para a casa do trovão pelas próprias mãos. Ou, traduzindo para o português, quando vão se suicidar. Ouça o programa
.
Programa 9 - Organização Indígena

Para resistir a tantas ameaças, uma ferramenta tem sido fundamental para centenas de povos indígenas que sobreviveram ao massacre histórico: a organização. Em todos os grotões do Brasil há organizações indígenas. São identificadas por siglas pouco conhecidas, mas são centenas e fazem a diferença para lideranças, professores, artesãos, mulheres e agentes de saúde que delas participam.

Há ainda organizações regionais, em alguns estados, e entidades fortes como a Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) e a Apoinme (Associação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Leste).

Lideranças dessas organizações falam sobre união, projeto etnopolítico, partido indígena, entre outros temas que esquentam debates em diversas áreas. As vozes das mulheres organizadas estão garantidas nesse microfone aberto, que registra ainda experiências exemplares de cooperativas, como a dos produtores de guaraná, dos Sateré-Maué. Ouça o programa

Programa 10 - Diálogo intercultural

Para falar de diálogo é necessário falar com o outro, o não-indígena, que, tradicionalmente, nunca escutou as vozes dos 235 povos. Este programa se inicia comemorando as mudanças de atitudes preconceituosas resultantes da falta de diálogo, de acordo com as palavras de um arte-educador Guarani. E entra pelo caminho do diálogo inter-religioso com uma análise do teólogo e pensador Leonardo Boff, seguido do bispo fiel à Teologia da Libertação missionária, Dom Pedro Casaldáliga, do Araguaia.

O diálogo internacional é registrado pelo microfone aberto em diferentes pontos do Brasil, onde vivem holandeses que trabalham junto a povos indígenas. E o diálogo musical é cantado por Marlui Miranda, cujo trabalho é ouvido durante os dez programas desta série. Levando os sons das aldeias para os palcos e CDs, Marlui é a ponte na garantia de um acervo musical vivo dos mais ricos do país e fala sobre a alegria dessa travessia.

Ponte intercultural também é o trabalho de artistas como Deuseni Félix, que registra com urucum misturado às tintas tradicionais as imagens das aldeias que transporta para suas telas. Com diferentes linguagens e tons, o diálogo com povos indígenas é o que traz a voz desses entrevistados neste programa. Ouça o programa

Fonte: Radio Nederland

Pintura de Deuseni Félix - "Jovem Suiá"

10 de setembro de 2007

Higiene bucal nas aldeias

Crianças Yanomami - foto OpenLearn

Vamos limpar os dentes com mirixi e kurawá?
Bruno Miranda da Rocha (Cirurgião Dentista, CIR-Funasa)

Em um trabalho que a equipe de saúde bucal do CIR estava realizando numa maloca, encontramos um europeu também trabalhando por lá. Ele assistiu a reunião que fizemos com a comunidade e, claro, o assunto “Medicina Tradicional” foi bastante falado. Ao final da reunião este estrangeiro nos procurou bastante interessado em saber mais sobre a medicina tradicional e já estava cheio de idéias de como incluir os recursos utilizados pelos indígenas na sociedade urbana. Até quando os estrangeiros vão valorizar mais as nossas riquezas do que nós, brasileiros?

O Brasil possui um número considerável de indígenas, e a medicina tradicional também tem muito que ser aproveitada para o cuidado com a nossa saúde. Faz-se necessário então, conhecer seus costumes, crenças, cultura, organização política e social, para melhor valorizar o conhecimento que eles têm em saúde. A cosmologia indígena quanto à origem de doenças bucais e os métodos utilizados para limpeza dos dentes são bem diferentes do que os demais brasileiros estão acostumados.

Claro que quanto à cosmologia, temos pontos bem peculiares da cultura indígena: quando uma mocinha estiver se formando (primeira menstruação) e não pedir para rezar antes de comer milho, jerimum, goiaba e outros alimentos, pode ter cárie; o feitiço pode causar cárie e fazer cair os dentes; para o menino não ter buracos no dente não é bom que ele coma da primeira caça; quando o casal de indígenas tem um bebê, o pai não deve trabalhar com lima para que os dentes da criança não furem.

As técnicas tradicionais geralmente são realizadas com plantas nativas da região. Fazer limpeza dental com carvão de casca de mirixi, de darora, de angico, ou com pau-rainha; lavar a boca com fel de boi, pimenta malagueta; mastigar raiz de timbó; lavar a boca com chá de mangaratai; usar talo da folha do buriti, côco e outras árvores.; bochecho com água de sal; alguns indígenas passam a lesma no dente para ficar mais duro. Outros limpam os dentes com fio de kurawá (uma planta). E outros fazem chá do dente da capivara ou do porco e bochecham para não pegar a cárie.

Quando nós profissionais usamos o fio do Kurawá ficamos satisfeitos com o resultado. Não sentimos falta do fio dental. Então? Vamos limpar os dentes com mirixi e kurawá?

FONTE: Conselho Indígena de Roraima

A malpighiácea Byrsonima crassifolia, o Mirixi (Murici)

Itacueretaba era Abaretama

Parque Estadual de Vila Velha, Paraná - foto de Jeffrey Cooper

A lendária Vila Velha está localizada a 30 km de Ponta Grossa, no Paraná e encanta pelas suas exuberantes e monumentais formações rochosas. Segundo a Ciência ela é produto de erosões e movimentações dos ventos, que durante muitos milhares de anos esculpiram a rocha formando as diversas figuras e a fantasmagórica aparência de uma cidade abandonada. A lenda tupi dá-lhe o nome de “itacueretaba” (a cidade extinta de pedra), mas seu nome mais antigo é “abaretama”, a terra dos homens, que havia sido escolhida pelos primitivos habitantes da região para preservar o “itainhareru”, o precioso tesouro, sob a proteção de Tupã.

Localizada à margem direita do Rio Tibagi (o rio do pouso), na vasta e ondulada Ibeteba (planície), Vila Velha, como já foi dito, conjunto de formações rochosas trabalhadas pela erosão ao longo de milênios, mexeu com a imaginação dos índios, que teceram muitas lendas transmitidas oralmente, geração após geração, pelos matuari (os velhos), aos jovens, a fim de explicar aqueles fenômenos. Uma delas é a de que o local teria sido escolhido pelos primitivos habitantes para sediar o Abaretama (terra dos homens), onde seria guardado o Itainhareru ( o precioso tesouro). Sob permanente proteção de Tupã, era o lugar cuidadosamente vigiado por uma legião de Aiabas (varões), escolhidos entre os mais valorosos homens de todas as tribos, treinados especialmente para desempenhar a honrosa missão; eles desfrutavam de todas as regalias, sendo-lhes, porém, vedado qualquer contato com mulheres, mesmo as de suas próprias tribos.

A tradição dizia que as mulheres, uma vez de posse do segredo do Abaretama, o divulgariam aos quatro ventos, e chegada a notícia aos ouvidos dos inimigos, estes arrebatariam o tesouro para si. E caso este fosse perdido, Tupã, o onipotente, deixaria de proteger seu povo e lançaria sobre ele as maiores desgraças. Os Apiabas eram fortes, ativos e bravos; seu único trabalho consistia em construir belos jardins nas terras daquelas planícies, e Tupã não permitia que, em recanto sagrado como era aquele, houvesse o pecado.

Numa certa época, Dhui, um índio de uma das tribos, fora escolhido chefe supremo dos Apiabas. Como todos os outros, tinha sido preparado, desde a mais tenra infância, para a sagrada missão. Entretanto, não era de seu desejo seguir aquele destino que lhe impunha o celibato. Seu sangue, de há muito, achava-se perturbado pelo fascínio das mulheres (era um cunhãrepixara mulherengo).

As tribos rivais, ao terem conhecimento da escolha, de pronto resolveram aproveitar-se da situação e elegeram entre as suas mais belas donzelas a que deveria ir tentar o jovem guerreiro, conquistar-lhe o coração e arrebatar-lhe o segredo.

A escolhida foi Aracê Poranga (Aurora Bonita). Não lhe foi difícil despertar a atenção do ardoroso Dhui e, pouco a pouco, enlaçou-o em sua habilidosa teia, e o fez de tal modo que não transcorreu muito tempo para que o tivesse completamente apaixonado e subjugado a seus pés. Pouco mais e Aracê penetrou no Abaretama, com o consentimento de Dhui, que não conseguiu resistir ao desejo que ela manifestara. Se, em nome do amor, Dhui faltou a seu dever, também por causa dele Aracê traiu seus irmãos: numa tarde primaveril, quando os ipês, depois da floração, deixavam cair pétalas douradas como se fora chuva de ouro, Aracê foi ao encontro de Dhui, levando uma taça de uirucuri (o licor do butiá), para embriagá-lo; porém o amor também já dominava sua razão, o que fez com que tomasse do licor. E à sombra de um ipê, languidamente, quedaram entrelaçados.

A chamada "Taça de Pedra" em Vila Velha

Tupã vingiu-se, desencadeando sua fúria na forma de um terremoto, que abalou toda a planície. A ira divina convulsionou o solo e a região toda a planície. A ira divina convulsionou o solo e a região foi totalmente destruída, trazendo morte e dor. E o Abaretama virou pedra, o tesouro aurífero fundiu-se, transformando-se em líquido, e os dois amantes, castigados, ficaram também, para todo o sempre, um ao lado do outro, petrificados.

A pouca distância, a causa de sua desgraça, a taça de pedra...

E quando ainda hoje alguém por ali passa, ouve o vento a repetir a última frase de Aracê: “Xê pocê ó quê” (Dormirei contigo).

Foi assim que o Abaretama tornou-se Itacueretaba... A terra fendeu: são as grutas próximas a Vila Velha, e o tesouro fundido é a lagoa, que é chamada de Dourada, a qual, quando o sol nela bate em cheio, ainda reflete o brilho do ouro.

Dhui e Aracê estão, ainda hoje, lado a lado, circundados de ipês descendentes dos que assistiram à morte de ambos. E os sobreviventes daquele povo partiram para outras terras, onde a maldição de Tupã não os alcançasse. Fundaram novo império, em uma das imersas paragens da América do Sul.

Fontes: J.A.Fonseca - Arqueologia & Simbologia, e Patrimônio Cultural do Estado do Paraná.

A "Lagoa Dourada" nos dias de hoje, às margens da rodovia.

O martírio de Victor Jara

"Requiem para Victor Jara"
Wolfgang Mattheuer (1973)


A data de 11 de setembro de 1973 é uma mancha negra na história da democracia na América Latina. Marca o golpe de estado no Chile, no governo de coalizão socialista, Unidade Popular, de Salvador Allende. Os dias posteriores viriam a denunciar todo a truculência do ditador Pinochet que "assumiu" o governo de linha dura e mandou prender, torturar e até matar os simpatizantes do regime esquerdista. Todos eram detidos e levados para o Estádio Nacional de Santiago.

Durante o desenrolar do golpe militar chileno, o cantor, compositor e músico Victor Jara se encontrava junto com centenas de outros militantes de esquerda, na Escola Politécnica de Santiago, quando foi preso. Levado para o Estádio Nacional, foi identificado por um oficial do exército que, se dirigindo a ele, falou: "Ah ! você é o guitarrista famoso ? Então me acompanhe." Mandou que um soldado lhe trouxesse um facão e dirigindo-se para o lado onde se concentrava o maior número de prisioneiros, decepou as mãos de Victor Jara.

O artista caiu no chão, esvaindo-se em sangue. Em seguida, o militar começou a chutar o corpo de Victor Jara, ordenando que ele cantasse. Num ímpeto de desespero, o trovador chileno levantou-se e, como se estivesse regendo uma orquestra , começou a entoar uma de suas composições. A resistente atitude emocionou os milhares de prisioneiros políticos que o acompanharam cantando até que tombasse morto, no dia 16 de setembro de 1973.

No momento de sua morte, Victor Jara era um cantor muito popular em seu país, um modesto trabalhador da cultura e um entusiasta colaborador do governo de coalizão esquerdista Unidade Popular. Em 1970 apoiou a campanha eleitoral do socialista Salvador Allende e se tornou uma espécie de embaixador cultural do governo, realizando temporadas artísticas, divulgando a música do Chile, dentro e fora do país.

Victor Jara nasceu em 28 de setembro de 1932 e passou toda sua infância na localidade de Lonquén, próximo a Santiago. Esteve um ano num Seminário onde iniciou seu estudo do canto gregoriano, o qual aliou aos ensinamentos de violão, repassados por sua mãe. Depois participou do coro da Universidade do Chile e de grupos de música folclórica e teatro. Essas duas atividades, permitiram ao compositor se tornar diretor artístico do conjunto Quilapayún em 1966. No ano seguinte já registra seu primeiro disco individual.

Victor Jara compôs dezenas de grandes sucessos da música popular chilena, de profunda beleza poética, que cantam a natureza "Pimiento" e "El Arado" ; falam da paixão pela mulher amada, "Te Recuerdo Amanda" e "Quando Voy Al Trabajo" ou denunciam as injustiças sociais e lutas do povo contra a opressão ou da sua miltância de esquerda "La Toma de Marzo 1967", "Marcha De Los Pobladores", "Manifiesto" e "Plegaria A Un Lavrador", entre outras.

Juntou-se a inúmeros outros artistas de sua época, na defesa da democracia chilena, tornando-se conhecido em todo o mundo e principalmente nos países de língua espanhola, por suas composições comprometidas com as lutas dos excluídos. Victor Jara também teve a maestria de fazer parceria com o seu conterrâneo, e não menos combatente, o poeta Pablo Neruda. São deles as criações "Ya Parte El Galgo Terible" e "Aqui Me Quedo".

Durante a fase das músicas de protestos, entre outras, se tornaram mais conhecidas composições como "El Derecho De Vivir Em Paz", em homenagem ao povo vietnamita e "A Cuba" e "Zamba Del CHE", ambas em homenagem aos cubano e ao comandante de sua revolução.

Victor Jara em Machu Picchu

As últimas composições de Victor Jara foram gravadas pouco antes de sua morte e nem chegaram a ser editadas no Chile. Após seu trágico assassinato, sua mulher Joan Turner, conseguiu sair do país, levando consigo os acetatos com os originais desses registros, que foram lançados no México pela gravadora Discos Pueblo, num então elepê intitulado "Manifiesto". A última poesia que ele escreveu, já prisioneiro dos militares, também veio a público:

Somos cinco mil

en esta pequeña parte de la ciudad.

Somos cinco mil

¿cuantos seremos en total

en las ciudades y en todo el pais?

Sólo aquí,

diez mil manos que siembran y hacen andar las fabricas.

Cuanta humanidad

con hambre, frío, pánico, dolor,

presión moral, terror y locura.

Seis de los nuestros se perdieron en el espacio de las estrellas.

Un muerto,

un golpeado como jamás creíse podria golpear a un ser humano.

Los otros cuatro quisieron quitarse todos los temores

uno saltando al vacío,

otro golpeandose la cabeza contra el muro,

pero todos con la mirada fija de la muerte.

¡Qué espanto causa el rostro del fascismo!

Llevan a cabo sus planes con precisión artera

sin importarles nada.

La sangre para ellos son medallas.

La matanza es acto de heroísmo.

¿Es éste el mundo que creaste, Dios mio?

¿Para esto tus siete días de asombro y de trabajo?

En estas cuatro murallas sólo existen un número que no progresa,

que lentamente querrá más la muerte.

Pero de pronto me golpea la conciencia

y veo esta marea sin latido,

pero con el pulso de las maquinas y los militares mostrando su rostro de matrona

lleno de dulzura.

¿Y México, Cuba y el mundo?

¡Que griten esta ignominia!

Somos diez mil manos menos

que no producen.

¿Cuantos somos en toda la patria?

la sangre del compañero Presidente

golpea más fuerte que bombas y metrallas.

Asi golpeará nuestro puño nuevamente.

¡Canto qué mal me sales

cuando tengo que cantar espanto!

Espanto como el que vivo

como el que muero, espanto.

De verme entre tanto y tantos

momentos del infinito

en que el silencio y el grito

son las metas de este canto.

Lo que vi,

lo que he sentido y lo que siento

hará brotar el momento...


(Estadio de Chile, Septiembre de 1973)

Fonte: Nelson Augusto

As primeiras gravações em estúdio de Victor Jara, no ano de 1957, podem ser baixadas em mp3: trata-se do álbum do Conjunto Cuncumén (palavra de um idioma ameríndio que significa "murmuro d´água") da Série "El Folklore de Chile". "El Carmen" (Ñuble) é uma das faixas onde Victor Jara canta uma cantiga camponesa com seu violão contraposto.

Para baixar as mp3 desse disco histórico, clique aqui. Fonte: Moreno y el Disco Rayado.

8 de setembro de 2007

Neruda em Machu Picchu

"A Conquista foi um grande incêndio. Os conquistadores de todos os tempos e todas as latitudes recebem um mundo vasto e ressonante, deixam um planeta coberto de cinzas. Sempre foi assim. Nós os americanos, descendentes daquelas vidas e daquela destruição, tivemos que escavar, para buscar debaixo das cinzas imperiais as gemas deslumbradoras e os colossais fragmentos dos deuses perdidos. Ou também tivemos que olhar para as alturas: às vezes uma torre dos antigos tempos, vencendo o miserável passo dos séculos, eleva seu orgulho sobre o continente. Porque eu distingo a arte subterrânea e a arte dos espaços abertos dos antigos americanos. E esta é minha própria maneira de conhecê-los e compreendê-los."

(Pablo Neruda, no texto "Nuestra América es Vasta e Intrincada", publicado em Cuadernos.)

"Quando passei pelo Alto Peru fui ao Cusco, subi a Machu Picchu. Fazia tempo que eu tinha regressado da Índia, da China, mas Machu Picchu é ainda mais grandiosa. Todas as civilizações dos manuais de História nos falavam da Assíria, dos ários e dos persas e de suas construções colossais. Depois de ver as ruínas de Machu Picchu, as culturas fabulosas da antigüidade me pareceram de papelão, de papier maché. Mesmo a Índia me pareceu minúscula, embadurnada de pintura, banal, feira popular de deuses, diante da solenidade altaneira das abandonadas torres incásicas. Eu não pude apartar-me daquelas construções. Compreendia que se pisávamos a mesma terra hereditária, tinhamos algo que ver con aqueles altos esforços da comunidade americana, que não podíamos ignorá-los, que nosso desconhecimento ou silêncio era não só um crime, mas também a continuação de uma derrota. O cosmopolitismo aristocrático nos tinha levado a reverenciar o passado dos povos mais afastados e nos tinha colocado uma venda nos olhos para não descobrirmos nossos próprios tesouros. Pensei muitas coisas a partir de minha visita ao Cusco. Pensei no antigo homem americano. Vi suas antigas lutas enlaçadas com as lutas atuais. Ali começou a germinar minha idéia de um Canto Geral americano. Antes havia persistido em mim a idéia de um canto geral do Chile, à maneira de crônica. Aquela visita mudou a perspectiva. Agora via a América inteira a partir das alturas de Machu Picchu. Este foi o título do primeiro poema com minha nova concepção. Fui precisando o que nos era necessário. Tinha que ser um poema extraordinariamente local, parcial. Devia ter uma coordenação entrecortada, como nossa geografia. A terra devia estar invariavelmente presente. Escrevi muito tempo mais tarde este poema de Machu Picchu. Como é a preparação de uma nova etapa de meu estilo e de uma nova preocupação em meus propósitos, este poema saiu demasiado impregnado de mim mesmo. O começo é uma série de lembranças autobiográficas. Também quis tocar ali por última vez o tema da morte. Na solidão das ruínas a morte não pode ser afastada dos pensamentos. Escrevi Macchu Picchu na Isla Negra, em frente ao mar"

(extrato da conferência "Algo sobre mi poesía y mi vida", na Universidad de Chile, que realizou o poeta ao completar seus 50 anos. Foi publicado na Revista Aurora, Nº1, julho de 1954)

Pablo Neruda (1904-1973) em Machu Picchu

"Canto Geral" tornou-se um clássico não só da literatura hispano-americana mas também da poesia universal do séc. XX, chamado pelo próprio Neruda, em "Confesso que Vivi", sua obra memorialística, de "meu livro mais importante". "Canto Geral" é uma obra atípica e representa uma reviravolta na poética de Pablo Neruda. O livro foi escrito em circunstâncias adversas, quando Neruda, por ser membro do Partido Comunista, sofria forte perseguição pela polícia do presidente chileno González Videla, sendo obrigado a transpor a Cordilheira dos Andes e refugiar-se no exterior. Lançado em 1950, o livro teve duas primeiras edições quase idênticas: uma oficial, e pública, no México; e outra, clandestina, no Chile. "Canto Geral", obra de caráter enciclopédico, reúne os mais variados temas, gêneros e técnicas, dividindo-se em 15 seções e 231 poemas. O livro nasceu marcado pelo sofrimento, tendo o poeta testemunhado, por intermédio dele, o seu grande amor tanto pelo Chile e por seu povo, quanto pelos povos oprimidos da América Latina. É uma obra que une o combate e a ternura.

Para baixar o disco com Neruda recitando seu poema "En las alturas de Machu Picchu", clique AQUI. Também se poderá baixar o arquivo pdf do livro "Canto General". As mp3 do disco CANTO GENERAL (lançado em 1975 pelo Conjunto Aparcoa e Marés González) estão disponíveis em dois arquivos compactados, um com o LADO A e outro com o LADO B.

LADO A:
1. América (Aparcoa) com a voz de Pablo Neruda "El hombre tierra fue..."
2. Canción Caribe (Pablo Neruda-Gustavo Becerra) canção"Como la copa de la arcilla..."
3. Quenas (folclore - arr. Aparcoa) "Era el Sur un asombro dorado..."
4. Una Sañosa Porfía (A.Encina - XVºS) canção sem letra
5. Conquista Española (Aparcoa) "ya van, ya van, ya llegan..."
6. Colonia (Pablo Neruda-Gustavo Becerra) canção "Cuando la espada descansó..."
7.Los Jilgueros (folclore - arr. Aparcoa) "La inteligencia, con un hilo helado..."
FACE B:
8. Oligarquías (Aparcoa) "Cuando ya todo fue paz y concordia..."
9. Chacabuco (Sergio Ortega) "Gota a gota una leche de turquesa..."
10. El Pueblo (Pablo Neruda-Violeta Parra) canção "Paseaba el pueblo..."
11. Pido Castigo (Aparcoa) "Ellos aquí trajeron..."
12. Santa Laura (Sergio Ortega) sem textote
13. Siempre (folclore - arr. Aparcoa) "Aunque los pasos..."

"Estos Aparcoa le sacan sonido al aire, al humo, a la nieve, a la lluvia, a cuanto existe. Y al corazón del pueblo. Son así. Andan por los caminos, recogen los instrumentos verdaderos, meten los ojos, la nariz, la boca y los oídos en la fragancia natural de Chile, en sus rápidas alegrías, en sus constantes dolores. Y salen cantando. Salen cantando con flautas y tambores, con el aire y el agua, con la tierra y el pueblo. Tienen razón. Solo cantando podemos vivir: honor a estos intransigentes muchachos que van y vienen con su música, a otra parte, porque en todas partes los estamos esperando." (Pablo Neruda, Isla Negra 1970)

A liberdade dos Karajá

Jovem Karajá iniciado na vida adulta vestindo adornos tradicionais. Arte: Winfield Coleman.

"Aceitar a morte para ser livre"
Texto de Leonardo Boff, em estória descrita pelos Karajá, da Ilha do Bananal

No começo do mundo, quando foram criados pelo Ser supremo Kananciué, os Karajá eram imortais. Viviam como peixes - aruanãs - e, desenvoltos, circulavam por todo tipo de rios e águas. Não conheciam o sol e a lua, nem plantas e animais. Mas viviam felizes, pois gozavam de perene vitalidade.
.
Estavam, entretanto, sob uma tentação permanente: entrar ou não entrar pelo buraco luminoso que havia no fundo do rio. O Criador lhes havia proibido terminantemente que fizessem isto, sob pena de perderem a imortalidade. Passeavam ao redor do buraco, admiravam a luz que dele saía, ressaltando ainda mais as cores de suas escamas. Tentavam espiar para dentro, mas a luminosidade impedia qualquer visão. Apesar disso, obedeciam fielmente.
.
Certo dia, um Karajá afoito violou o tabu da interdição. Meteu-se pelo buraco luminoso adentro e foi dar nas praias alvíssimas do rio Araguaia. Viu uma paisagem deslumbrante. Encontrou um mundo totalmente diverso do seu. Havia um céu de um azul muito profundo, com um sol irradiante, iluminando todas as coisas e aquecendo agradavelmente a atmosfera. Aves coloridas, com seus gorjeios, davam musicalidade ao ar. Animais dos mais diversos tamanhos e cores circulavam pacificamente um ao lado do outro pelas campinas. Borboletas ziguezagueavam por sobre flores perfumadas e florestas exuberantes eram entremeadas por plantas carregadas de frutos.
.
Deslumbrado, o índio Karajá ficou apreciando aquele paraíso terrestre até o entardecer. Quis retornar, mas foi tomado por um outro cenário fascinante. Por detrás da verde mata nascia uma lua de prata, clareando o perfil das montanhas ao longe. No céu, uma miríade de estrelas o deixou boquiaberto, a ponto de se perguntar:
.
- O que se esconde atrás daquelas casinhas todas iluminadas? Quem lhes acende a luz, para brilharem com tanta força?
.
E assim, embevecido, passou a noite até que comecou novamente a clarear e desaparecer a lua. O sol, que parecia ter morrido na noite anterior, ressurgia, glorioso, no horizonte distante.
.
Lembrando-se de seus irmãos peixes, regressou com os olhos cheios de beleza, passando rápido pelo buraco luminoso. Foi falar aos seus irmãos e irmãs, dizendo-lhes:
.
- Meus parentes, passei pelo buraco luminoso e descobri um mundo que vocês sequer podem imaginar. Contemplei com alegria no coracão o sol, a lua e as estrelas. Vislumbrei com os olhos esbugalhados campinas floridas e infindáveis borboletas. Apreciei animais de todos os tamanhos em florestas verdes e azuis. As praias são alvíssimas e de areias finas. Temos que falar com nosso Criador, Kananciué, para nos permitir morar naquele mundo.
.
Mesmo sem entender aqueles nomes todos, os parente ficaram tão curioso que já queriam imitar a coragem do irmão Karajá e, coletivamente, desobedecer, passando pelo buraco proibido. Mas os anciãos sabiamente observaram:
.
- Irmãos e irmãs, temos que respeitar nosso Criador, pois nos quer bem e nos fez imortais como ele. Vamos conversar com ele e pedir-lhe as devidas permissões.
.
Todos, sem nenhuma excecão, concordaram. Foram falar com seu Criador, Kananciué. Expuseram as boas razões de seu pedido.
.
O Criador, depois de ouví-los e, com certa tristeza na voz por causa da desobediência do afoito Karajá, lhes respondeu:

.
- Entendo que vocês queiram passar pelo buraco luminoso que os levará a mundo de beleza, de cores variegadas, de diversidade de plantas, de flores, de frutos e de animais. Contemplarão, sim, a majestade do céu estrelado, o esplendor do sol e a suavidade da lua. Divertir-se-ão nas águas claras do Araguaia e rolarão de alegria em suas praias alvíssimas. Mas eis que vos revelo o que vocês não sabem e não vêem. Toda essa beleza é efêmera como a borboleta das águas, conhecida de vocês, que nasce hoje e desaparece amanhã. Os seres de lá não tem a imortalidade como vocês. Todos nascem, crescem, maduram, envelhecem e morrem. Todos são mortais. Todos caminham para a morte...Irresistivelmente para a morte. Vocês querem isso para vocês? Cabe a vocês decidirem.
.
Houve um silêncio aterrador. Todos se entreolhavam. Todos se voltaram ao Karajá que descobrira o mundo encantado, embora mortal. E tomados como que de fascínio pela beleza daquele mundo, confirmada pelo Criador Kananciué em sua fala, responderam:
.
- Sim, Pai. Sim, queremos conhecer aquele mundo. Queremos morar naquele paraíso dos mortais.
.
O Criador ainda lhes falou pela última vez:
.
- Aceito a decisão de vocês porque aprecio acima de tudo a liberdade. Mas saibam que de hoje em diante serão mortais. Continuarão livres, não deixem jamais que lhes roubem a liberdade, mas deverão morrer como todos os seres daquele mundo radiante. Lembrem-se que trocaram o dom supremo da imortalidade pelo dom precioso da liberdade. A história é de vocês.
.
E todos os Karajá passaram entusiasmados pelo buraco luminoso do fundo do rio. Chegaram ao mundo dos mortais, da beleza efêmera e das alegrias finitas. Vivem ainda hoje naquele paraíso, às margens do Araguaia. Tiveram a inaudita coragem de preferirem a mortalidade, para que pudessem nascer integralmente como seres de liberdade, o que continuam sendo até os dias de hoje.

Fonte: Revoluções Sustentáveis


"INY - Canto da Tradição Karajá", um cd lançado em 2006 pelos Karajá pode ser adquirido no Ponto Solidário: Esse disco foi gravado na aldeia Fontoura, às margens do Rio Araguaia, no Tocantins. Daniel Coxini, o líder da aldeia, apresenta o disco dessa maneira: "Os Iny realizam todos os anos duas grandes cerimônias: a cerimônia de Aruanã (Ijasó), para reverenciar os ancestrais e Canãxuwê (Criador); e a cerimônia de Hetohoky, a Festa de Casa Grande, para iniciar os meninos na vida adulta. (...) Por esta razão gravamos este CD com alguns cantos destes rituais tão significativos para o povo Iny; para que através da música, o Tori (não-índio) possa conhecer um pouco da cultura do povo Iny. E assim, conhecendo e entendendo nossa tradição, possa ajudar a preservá-la, pois ela é parte da história deste país Brasil."

Realização: IDETI - Instituto de Desenvolvimento das Tradições Indígenas

4 de setembro de 2007

O canto e o encanto do Uirapuru

Cyphorhinus(aradus) modulator, o uirapuru do Acre
foto de Johann Dalgas Frisch

Assim é contada a lenda amazônica do Uirapuru:

Havia na tribo Tupi um jovem que tocava maravilhosamente flauta. Apelidaram-no até de Catuboré, que significa "a flauta mágica". Não era bonito, nem tinha enorme charme. Mas por causa dos sons melodiosos de sua flauta era cobiçado por quase todas as meninas casadouras. No entanto, somente a simpática Mainá conseguira conquistar seu coração.

Marcaram o casamento para a primavera, quando na mata florescem as quaresmeiras roxas e amarelas e os fedegosos se enchem de vermelho.

Mas aconteceu uma tragédia. Certo dia... Catuboré, saiu para a pesca num lago, distante da maloca. Escureceu e ele nada de chegar. Mainá e suas amigas passaram a noite em claro, com o coração apertado de preocupação e de maus pressentimentos.

No dia seguinte, a tribo inteira se mobilizou, procurando-o por todos os caminhos. Finalmente, não muito distante do lago, encontraram o "flauta mágica" morto e enrijecido, ao pé de uma grande árvore. Logo entenderam: uma serpente venenosa lhe havia picado mortalmente a perna. Todos choraram copiosamente, de modo especial Mainá e as moças que tanto apreciavam os sons maviosos de sua flauta. Mas como estavam distantes da maloca e quase todos estavam ali presentes, resolveram enterrar Catuboré ali mesmo, ao pé da árvore que assistira sua morte.

Mainá, quando a saudade batia muito forte, vinha com suas amigas chorar sobre a sepultura do amado.Passaram-se várias semanas e as lágrimas não diminuíam. A alma de Catuboré, vendo a tristeza da namorada, não conseguia também ficar em paz. Chorava junto e lastimava o seu infortúnio. Pediu, então, ao espírito da mata que o transformasse num pássaro, mesmo que fosse pequenino e feio, contanto que fosse cantador, capaz de consolar Mainá. E foi transformado, então, no irapuru. Ele é parecido com Catuboré, pois não tem especial beleza, mas canta como ninguém na floresta, num som semelhante ao de sua flauta.

Hoje, tanto tempo depois, o irapuru continua a cantar, embora apenas ocasionalmente. Mas quando entoa seu canto belo e triste, todos os animais se sentem atraídos uns pelos outros, começam a namorar e a se beijar. Os demais passarinhos que também cantam e gorjeiam, respeitosos e atentos, se calam completamente. Só se escuta a voz dolente do irapuru, consolando sua amada.
.
Em outubro de 1990, a estupenda cantora brasileira Tetê Espíndola, com uma bolsa da Fundação Vitae, em conjunto com Marta Catunda e Humberto Espíndola, viajou à Amazônia numa expedição em busca do canto do uirapuru, onde gravaram uma série de sons de pássaros. Depois de catalogados, e com parte das experimentações musicais feitas por Tetê na Amazônia, surgiu o disco Ouvir/Birds (1991). Tetê Espíndola uniu neste trabalho ciência e poesia. A ciência se deu ao lado do ornitólogo Jacques Viellard e sua equipe, numa fantástica expedição pela Floresta Amazônica. A poesia surgiu em momentos como o do aparecimento inesperado do Uirapuru. "A gente estava gravando em uma manhã, enquanto eu tocava craviola e de repente o Uirapuru apareceu. Todos os outros pássaros pararam de cantar e eu comecei a improvisar junto com ele, que me acompanhou nos graves e agudos". Os temas melódicos foram desenvolvidos a partir dos cantos de alguns pássaros gerando blues, jazz, valsa, salsa e até samba outros cantos serviram como inspiração temática ou para colagem, e alguns sons foram usados como instrumentos vivos nos arranjos musicais.

Para baixar as mp3 em arquivo rar, clique em: 1991 - Tetê Espíndola - Ouvir/Birds

Lado A - Céu aberto
01 Bico de brasa
(Tetê Espíndola)
Cláudio Leal Ferreira: arranjo e teclados
Tetê Espíndola: craviola solo e arranjo vocal

02 Quero quero
(Arnaldo Black)
Arnaldo Black: arranjo
Cláudio Leal Ferreira: teclados e arranjo
Tetê Espíndola: arranjo vocal

03 Migração
(Arnaldo Black)
Cláudio Leal Ferreira: arranjo de teclados
Elias de Almeida: violão ovation
Paulo Taccetti: cello (spalla)

04 Tinguaçu
(Tetê Espíndola)
Cláudio Leal Ferreira: teclados e arranjo
Tetê Espíndola: craviola e arranjo

05 Uru
(Arnaldo Black)
Arnaldo Black: arranjo e violão
Tetê Espíndola: arranjo vocal

06 Seriema
(Tetê Espíndola)
Cláudio Leal Ferreira: teclados
Duo Fel: carrasqueira violões
Toninho: flauta

Lado B - Mata fechada
01 Sabiá verdadeiro
(Arnaldo Black)
Arnaldo Black: arranjo
Cláudio Leal Ferreira: arranjo e teclados

02 Festa da curicaca
(Tetê Espíndola)
Ari Nascimento: baixo
Arnaldo Black: teclados e percussão eletrônica
Cláudio Leal Ferreira: teclados e percussão eletrônica
Guello: tumbadoras
Itamar Assumpção: algazarra
Tetê Espíndola: arranjo, craviola e algazarra

03 Garrincha da chuva
(Tetê Espíndola/Arnaldo Black)
Arnaldo Black: arranjo
Cláudio Leal Ferreira: teclados e arranjo
Guello: percussão
Tetê Espíndola: arranjo

04 Jaó & Cia.
(Tetê Espíndola)
Marta Catunda : arranjo
Alzira Espíndola: vozes
Tetê Espíndola: vozes e arranjo

05 Colagem da mata
(Tetê Espíndola/Alzira Espíndola)
a) Ao uirapuru (Tetê) gravação na mata ao entardecer
b) Passarolando (Tetê) vocalize na mata, exercício matinal
c) Ressoando (Alzira/Tetê) improviso noturno de voz e craviola gravado na acústica da curva do rio Macauã

06 O encontro com o uirapuru
Momento do acaso da natureza dueto de Tetê com o uirapuru da terra gravado entre duas seculares seringueiras

Ficha Técnica:
Programação de sintetizadores e sequencer: Cláudio Leal Ferreira
Programação de sintetizadores e sequencer em Uru e samplagens: Arnaldo Black
Apoio e participação na pesquisa e audição dos pássaros: Marta Catunda
As gravações na mata foram realizadas por Jaques Villiard em sistema digital e gravador Nágara, nos seringais Serradinho e Providência; nos rios Macauã e Sena Madureira; e na fronteira do Acre com o Amazonas

FONTE: Blog Assum Preto / Site oficial: www.teteespindola.com.br
Contatos para shows com Tetê Espíndola:
>>> No Brasil: +55 11 32 88 32 92 luzazulbrasil@hotmail.com
>>> Na Europa: +33 1 49 85 96 89 multicrea@claranet.fr

O canto surrealista de Elsie Houston


Benjamin Péret nasceu em Rezé (Loire-Atlantique), na França, em 1899. Foi obrigado pela própria mãe a alistar-se no exército francês, às vésperas da I Guerra Mundial. Isso provocou nele uma profunda repulsa pelo autoritarismo, que procurou combater ao longo de toda sua vida. Após a guerra, filiou-se ao movimento Dadá, com o qual romperia em 1922, juntamente com seu amigo André Breton. Ambos, ao lado de personalidades como Louis Aragon, Philippe Soupault e Paul Éluard, fundaram o surrealismo. Ao lado de Pierre Naville, foi responsável pela edição dos primeiros números da revista La Révolution Surréaliste (1924). Todavia, no início de 1929, ano da publicação do Segundo Manifesto do Surrealismo, a inquietação atinge novamente Péret, que decide mudar-se para o Rio de Janeiro com sua esposa, a brasileira Elsie Houston.
.
A soprano brasileira Elsie Houston era filha de James Frank Houston, um conceituado dentista negro norte-americano que se estabeleceu no Rio de Janeiro em 1891, e de Arinda Galdo, uma carioca descendente de portugueses da Ilha da Madeira. Nascida a 22 de abril de 1902, na adolescência iniciou seus estudos de canto lírico na Europa (foi aluna da soprano Lilli Lehmann, na Alemanha), e em 1922, Elsie conheceu o maestro e compositor Luciano Gallet, de quem tomou o gosto por harmonizar canções folclóricas em estilo erudito. Nos anos seguintes, fez amizade com expoentes do Movimento Modernista, como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Pagú, Manuel Bandeira e Murilo Mendes. Em 1924 gravou de Luciano Gallet as composições "Ai, que coração", "A perdiz piou no campo" e "Fotorototó". Em 1925 gravou do mesmo compositor "Bambalelê", "Traieiras" e "Arrazoar". No mesmo ano, estudou com Ninon Vallin em Buenos Aires na Argentina. Em 1927 conheceu Mário de Andrade, o que aumentou seu interesse pelo folclore brasileiro, tendo na mesma ocasião recolhido temas do folclore nordestino. No mesmo ano, participou do primeiro concerto de Villa-Lobos na Maison Gaveaux, em Paris, juntamente com Tomás Terán, Artur Rubinstein e Alina Van Barentzen. Na mesma ocasião recomeçou na capital francesa os estudos com Ninon Vallin, quando conheceu e casou-se com o poeta surrealista e militante trotskista Benjamin Péret. Entre 1929 e 1931, o casal residiu no Brasil, e Péret incentivou a esposa a pesquisar o folclore e as religiões afro-brasileiras, o que fizeram durante viagens pelo Norte e o Nordeste do Brasil em 1929. A colaboração foi prolífica.
.
Em "Benjamin Péret: um surrealista no Brasil (1929-1931)", Jean Puyade conta que entrando na família Houston, Péret encontra um meio propício ao prosseguimento de sua reflexão tantono terreno poético como naquele da ação social. Por seu lado, Elsie Houston, em ligação com Villa-lobos e Mário de Andrade, desenvolve pesquisas sobre as canções populares brasileiras, sobre as influências indígena e africana nessa arte. (...) O interesse pela arte e pensamento primitivos foi, sem dúvida nenhuma, um elemento determinante para impulsionar Péret e Elsie a viajarem para o Brasil. Não esqueçamos o irresistível apelo exercido pelas "artes selvagens“ sobre os poetas e pintores surrealistas, uma vez que —desnudam as raízes da criação artística e, conseqüentemente, contribuem de uma maneira decisiva, à definição ou à verificação dos modos de intervenção do surrealismo nas artes plásticas“ e na poesia. Entre 1926 e 1928, as exposições dos pintores surrealistas foram acompanhadas de exposições de objetos das ilhas da Oceania ou dos índios da Colômbia britânica, do Novo México, da Colômbia e do Peru. Entretanto, a arte primitiva do Brasil é inteiramente desconhecida para eles. Péret deseja, sem nenhuma dúvida, abrir um novo caminho de conhecimento. Tal perspectiva - vinculada ao acordo político que se esboça entre Péret e Mário Pedrosa e ao amor intenso que reúne Benjamin e Elsie - afasta-o, portanto, fisicamente do grupo surrealista no momento preciso em que este está engajado nos embates que desembocarão, em 1929, no Segundo Manifesto do Surrealismo.
.
Uma carta de Péret, datada de 5 de dezembro de 1928 e dirigida a A. Guinle, rico mecenas carioca, o comprova: ele pede um financiamento para uma viagem ao Brasil, com os seguintes objetivos: —1) busca e compra de objetos pré-colombianos; 2) realização de um filme documentário e de um filme romanceado sobre as lendas e costumes dos índios; 3) artigos para publicação no Petit Journal (do qual Péret é repórter) assim como projeto de um livro; 4) coleção de cantos e música populares indígenas“. O itinerário projetado lhe faria percorrer a Amazônia, o Peru (Iquitos, Lima, as costas peruanas, Cuzco), o norte da Bolívia, o Mato Grosso (Goiás) e, enfim o rio Araguaia até o mar. Guinle recusará financiar a viagem, apesar de se propor a facilitar os passos e esforços do poeta francês.
.
Muitas cartas de Péret evidenciam a seriedade com a qual encara esses objetivos. Assim, confirma-se um interesse que vai ocupá-lo até o fim de sua vida e que suas estadas no Brasil e no México reforçarão. O livro, do qual ele fala desde 1928 enquanto um projeto, será terminado em 1959, algumas semanas antes de sua morte e publicado postumamente na França, pela editora Albin Michel, em 1960, com o título Antologia dos mitos, lendas e contos populares da América. Não há nenhuma dúvida que suas discussões, já em 1928, com Elsie, Villa-Lobos e Pedrosa sobre esse assunto, fazem-lhe pressentir o parentesco de sua obra e dessas artes.
.
Péret embarcará com Elsie no início do ano de 1929, munido de mais de dez cartas de recomendação escritas e assinadas por Villa-Lobos, nas quais é descrito como "um talentoso escritor, poeta e jornalista francês" e Elsie como "uma admirável cantora, primogênita de nossa nova raça brasileira, genuína em físico, alma e espírito"; ambos são apresentados como desejosos de "conhecer o coração dos vários estados do Brasil“. São cartas dirigidas para todas as pessoas que podem facilitar sua viagem de estudos na Amazônia, no Mato Grosso e no norte do Brasil e, também, para todos os diretores de jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo e alguns da Paraíba. Villa-Lobos deseja que os dois sejam bem recebidos, —à brasileira“, pela imprensa nacional.

Em 1930, enquanto Péret contribuía com a "Revista de Antropofagia" e publicava os estudos "O Almirante Negro" e "Candomblé e Macumba", Elsie lançava (em Paris), o livro Chants populaires du Brésil, e no ano seguinte, o ensaio La musique, la danse et les cérémonies populaires du Brésil. Neste período, ela ainda gravou várias canções folclóricas com arranjos próprios. Em 1930 Elsie gravou o samba "Macumbagelê" de J. da Paulicéia e Lilico Leal. No mesmo ano gravou o batuque "Cadê minha pomba rola", a canção "Puxa o melão, sabiá!" e os cocos "Coco dendê trapiá", "Eh! Jurupanã", "Aribu" e "Ai sabiá da mata", todas de motivo popular com arranjos de sua própria autoria. Na mesma ocasião publicou em Paris, com prefácio de Phillipe Stern, o livro "Chants populaires du Brésil". Em 1931 escreveu o ensaio "La musique, la danse et les cérémonies populaires du Brésil", publicado em "Art populaire, travaux artistiques et scientifiques". Em 1932 gravou de Pedro da Conceição o samba "Capote do Mangô é teu" e a marcha "Vejo a Lua no céu". Excursionou pela América e pela Europa.

Segundo Puyade, Em 21 de Janeiro de 1931, ao lado de Mário Pedrosa, Lívio Xavier e Aristides Lobo, Péret fundará a Liga Comunista (Oposição de Esquerda), de linha trotskista. Péret (que tinha o codinome de "Maurício"), foi um dos encarregados da "Comissão de Agitprop" (ou "agitação e propaganda"). Entre seus planos como "agitador cultural" (...), consta a criação de uma "cooperativa cinematográfica, para exibição de filmes revolucionários" e a produção de um panfleto em "linguagem popular" sobre o Golpe de 1930. Também em 1931, nasce o filho dos Péret, a quem o pai deu o estranho nome de Geyser (Satan chegou a ser cogitado, mas convenceram-no a descartar a idéia). A seguir, o casal, hostilizado pelo regime anti-comunista de Getúlio Vargas, é obrigado a deixar o Brasil rumo à França. Geyser foi deixado no Brasil, aos cuidados da avó materna. Na França, o casal Péret parece ter se distanciado progressivamente, em boa parte, supõe-se, graças ao gênio rude e intransigente do poeta, difícil de tolerar mesmo entre seus colegas surrealistas. Em 1933 Elsie retorna ao Brasil para deixar o filho Geyser aos cuidados de sua mãe. Péret parte em 1936 para lutar na Guerra Civil Espanhola e lá se envolve com uma mulher mais jovem, a pintora hispano-mexicana Remedios Varo. Em 1937, por este e/ou outros motivos, Elsie decide mudar-se para Nova York.

Elsie Houston em foto de Carl Van Vechten

Em má situação financeira, Elsie havia cantado na noite parisiense e lá desenvolveu uma performance que nada mais era do que um ritual de macumba estilizado. Ao mudar-se para Nova York, passou a apresentar-se em boates sofisticadas da cidade, como o Le Ruban Bleu e o Rainbow Room, atraindo atenções pelo exotismo da cerimônia de vudu (como a entendiam os norte-americanos) e por seus notáveis dotes vocais (que já foram comparados aos de um pássaro da selva). Segundo escreveu um repórter da Time Magazine, iluminada por um círculo de velas, ela "batia num tambor" e "cantava invocações a Iemanjá, deusa do Brasil (sic), Ogum, deus da guerra e a Exú, o demônio (sic)".Apesar de seus problemas anteriores com o governo brasileiro, e sem atingir a dimensão de uma Carmen Miranda, Elsie também parece ter atuado como uma "embaixatriz" dentro do espírito da "Política de Boa Vizinhança" que então imperava entre os Estados Unidos e seus vizinhos sul-americanos. Entre 1939 e 1940, ela apresentou um programa semanal de rádio pela NBC, a "Fiesta Pan Americana", onde divulgava a música brasileira.

Apesar de ter rompido com Péret e de nem mesmo citar publicamente seu nome (para a "Time Magazine", ela justificou isso declarando que "ele era anti-nazista e ainda vivia em Paris"), Elsie aparentemente ainda se considerava casada com o poeta. Todavia, isso não a impediu de manter um romance com o conde belga Marcel Courbon. Na tarde de 20 de fevereiro de 1943, Elsie Houston foi encontrada morta em seu apartamento na elegante Park Avenue. Segundo informou ao "New York Times" o detetive William Chaplain, da polícia de Nova York, tratava-se de um "aparente suicídio". Mário de Andrade escreveu um obituário para a cantora, em cuja introdução se lê (Puyade, 1985):

Era uma cantora esplêndida. Possuía técnica larga, auxiliada por uma inteligência excepcional em gente do canto. Tão excepcional que Elsie Houston conseguia vencer as vaidades, reconhecer suas pequenas deficiências técnicas e os limites naturais da sua voz. E era um gozo dos mais finos a gente perceber a habilidade com que ela escolhia programas ou disfarçava os escolhos ocorrentes no meio duma canção.

"Elsie Houston - A Feminilidade do Canto", cd lançado pela gravadora Atração Fonográfica, vem acompanhado de um rico libreto biográfico organizado por Emanoel Araujo e Gregórie de Villanova. Trata-se de um projeto de pesquisa integrado à exposição “Negras memórias, memórias de negro”, cujo lançamento ocorreu durante a recente inauguração do Museu Afro Brasil, no Parque do Ibirapuera e está à venda no local por módicos 30 reais. Para quem estiver em São Paulo capital, vale muito conhecer o novo museu e comprar o disco que resgata catorze fonogramas originais da cantora. O site de música brasileira Sovaco de Cobra, falando sobre o cd, comenta:

Mário de Andrade define adequadamente essa Elsie pesquisadora perspicaz: ela “possuía um conhecimento da nossa música popular pelo menos bem mais largo e menos regional que os dos nosso compositores”. (...) A importância desse trabalho, ainda que pouco valorizado por aqui na época de seu lançamento (e que até hoje permanece sem tradução para o português), concede à Elsie Houston, segundo palavras do pesquisador Emanoel Araujo, a alcunha de embaixatriz não oficial de seu país, em função desse empenho de divulgadora da música brasileira: “Elsie era não apenas uma pesquisadora da música de sua terra, mas também sua intérprete, ou melhor dizendo, uma “diseuse” de suas canções: ela “dizia” o folclore do mundo ao seu público ouvinte, explicando o que cantava, rapidamente durante os concertos, ou de maneira mais extensa, como o fez em conferências que pronunciou em Paris. Quando não podia ou não sabia cantar uma música, Elsie tocava um disco para apresentá-la ao público, enriquecendo assim a metodologia didática usada para transmitir seu conhecimento”.
.
A partir de 1937, quando mudou-se para Nova Iorque, Elsie despontou como divulgadora da música brasileira nos EUA. entre 1939 e 1940, ela teve um programa semanal de rádio na NBC, chamado “Fiesta Pan Americana”, onde apresentava repertórios folclóricos brasileiros em horário nobre. De fato, Elsie consolidou de vez a posição de estrela, uma diva, admirada pela crítica especializada que contemplava sua originalidade e capacidade como cantora, e também pelo grande público americano, amante na época de voodoo songs - gênero relacionado à musica e religião do Haiti - e que se deslumbrava com a imagem exótica e hipnotizante da artista, seu olhar, suas vestimentas, seu gestual ao se auto-acompanhar com percussão e um voz marcante, inesquecível.
.
Tal fascínio de sua presença pode ser imaginado, quiçá, por meio da poesia de Murilo Mendes: “[Elsie] cantando, os braços morenos e a pinta do rosto, a dançante cabeça, desobrava o charme ambíguo; era sopro, tensão malinconia, timbre de violência e ternura, noite calmosa, dança de caboclo, boitatá, berimbau, bambalelê, quibungo, taieira, ponto de santo; lirismo agressivo anarquia, êxtase; tonal, atonal; azul terrível, estrela do céu e é lua nova.
.
Quanto ao interesse de Benjamin Péret em registrar a história oral dos ameríndios brasileiros, segundo Puyade foi apenas em 1959, no último ano de sua vida, depois de um longo período no México (onde aprofundará e alargará seu conhecimento do pensamento mítico) e depois de uma segunda estada no Brasil, em 1955-1956 quando finalmente pôde ir visitar algumas aldeias indígenas, que ele conseguiu concretizar o projeto que o acompanhara ao longo de sua vida: sua Antologia dos mitos, lendas e contos populares da América. Citaremos outra obra sua que escreveu no Brasil nos anos 30, "O Quilombo dos Palmares", onde disse:
.
"De todos os sentimentos que comovem o coração do homem, o desejo de liberdade é certamente um dos mais imperiosos e sua satisfação é uma das condições essenciais da existência. Por isso, quando o homem se vê privado dela, não tem sossego até não havê-la reconquistado; de tal modo que a história poderia limitar-se ao estudo dos atentados contra esta liberdade e dos esforços dos oprimidos para sacudir o jugo que lhes foi imposto. Se o desejo de liberdade está até tal ponto arraigado no coração do homem, não é paradoxal que se tenha deixado ser arrancado mesmo que só seja uma vez? De fato, sua brutal supressão, provocada por agudas crises, parece súbita na medida em que a evolução que a ela conduz permanece desapercebida. […]
.
Com efeito, é como se o homem nunca aspirasse tanto à liberdade como quando a perde; sem dúvida porque constitui, para o espírito e para o coração, o oxigênio sem o qual o indíviduo não pode sobreviver. Se o ser físico não pode viver sem ar, o ser sensível, sem liberdade, não pode senão murchar e degenerar-se."
.
Benjamin Péret (1899 - 1959)

Para ouvir Elsie Houston, o Instituto Moreira Salles disponibiliza em seu Acervo para audição vinte fonogramas originais da diva: basta entrar com o nome dela na pesquisa (clique).