30 de abril de 2007

figuras de almanaque

Não quero aceitar que um dia tudo termine assim, toda a riqueza de uma cultura resumindo-se a meras figuras de almanaque, ilustrativas de um procedimento etnocida por parte de gerações e gerações de pretensos homens civilizados (aos quais eu próprio fui pagante de impostos, royalties e ingressos). É por isso que tento extrair de mim alguma filosofia que me permita elucidar esse dilema das relações interculturais, e venho vasculhando textos que possam servir de contributo a uma nova dimensão de leitura do que aconteceu, do que acontece, e do que poderá acontecer ao Homem. Mas não me inscrevo no velho humanismo que nos legou tantos falsos procedimentos de cortesia à guisa de civilidade: antes quero me propor a um novo humanitarismo, que obtenha resultados crescentes de solução de demandas comuns a todos os povos e a todas as espécies, que será talvez a diretriz múltipla de encontro ao equilíbrio do telar do universo presente aqui em nós.
Vou transcrever aqui um poema de Edgar Allan Poe que fala um pouco do processo de busca por algo que já se supõe inalcançável:

ELDORADO

(Edgar Allan Poe)

Gaily bedight,

A gallant knight,

In sunshine and in shadow,

Had journeyed long,

Singing a song,

In search of Eldorado.

*

But he grew old –

This knight so bold –

And o’er his heart a shadow

Fell as he found

No spot of ground

That looked like Eldorado.

*

And, as his strength,

Failed him at length,

He met a pilgrim shadow –

“Shadow,” said he,

“Where can it be –

This land of Eldorado?”

*

“Over the Mountains

Of the Moon,

Down the Valley of the Shadow,

Ride, boldly ride,”

The shade replied, -

“If you seek for Eldorado.”

* * *

ELDORADO

(tradução de Marcos Souza)

Belamente equipado,

Um galante cavalheiro,

Pela luz e pela sombra,

Cantando uma canção,

Cavalgava velozmente

A procura d’Eldorado.

*

Porém ele envelheceu,

O valente cavalheiro,

Dominado pela sombra

Do fracasso na procura

Desse lugar almejado

Semelhant’ao Eldorado.

*

Já findavam suas forças

Quando então el’encontrou

Uma sombra peregrina.

“Sombra”, ele perguntou,

“Onde posso encontrar

Um lugar com’Eldorado?”

*

“Pelas Montanhas da Lua,

Ou pelo Vale da Sombra,

Cavalgue, oh cavalheiro,”

A sombra lhe respondeu,

“Se deseja encontrar

Um lugar com’Eldorado.”

29 de abril de 2007

Instintos de sobrevivência

Nativo da Terra do Fogo com ferramentas de caça e presas
Cartão postal argentino de 1910, publicado por Seliger (Punta Arenas & Magallanes)

O físico Fritjof Capra, falando sobre sustentabilidade na Agenda21, nos faz pensar não só sobre como a espécie humana se relaciona com o ambiente e as outras espécies, mas também como ela se relaciona consigo mesma: “Nas comunidades humanas, parceria significa democracia e poder pessoal, pois cada membro da comunidade desempenha um papel importante. Combinando o princípio da parceria com a dinâmica da mudança e do desenvolvimento, também podemos utilizar o termo 'coevolução' de maneira metafórica nas comunidades humanas. À medida que uma parceria se processa, cada parceiro passa a entender melhor as necessidades dos outros. Numa parceria verdadeira, confiante, ambos os parceiros aprendem e mudam - eles coevoluem. Aqui, mais uma vez, notamos a tensão básica entre o desafio da sustentabilidade ecológica e a maneira pela qual nossas sociedades atuais são estruturadas - a tensão entre economia e a ecologia. A economia enfatiza a competição, a expansão e a dominação; ecologia enfatiza a cooperação, a conservação e a parceria”.

Na verdade, os seres humanos não são apenas “seres gregários”, pois sabemos que além de viver em grupos também desenvolveram a atitude de segregar (e até perseguir) outros grupos humanos. É bem interessante ler o que escreve Janos Biro em seu artigo “Condicionamento Humano” , explicando a competição brutal entre grupos (e seres) humanos:

A grande vantagem humana (toda espécie tem a sua) é a plasticidade do aparelho cognitivo, ou seja, a capacidade de armazenar muitas informações e lidar com elas de maneira bem mais complexa. Graças a isso o ser humano pode repassar comportamentos por educação de forma bem mais eficiente, o que o levou a poder sobreviver em diferentes ambientes e situações sem que seu corpo precisasse mudar demais. Esta pode ser uma vantagem, mas também uma armadilha. (...). Tendo criado um trauma das glaciações, eles podem ter feito uma adaptação cultural para evitar sofrimento futuro. Esta adaptação envolve um acúmulo de recursos sem precedentes, em que o desenvolvimento da agricultura e da criação de animais foi conseqüência, não causa. Também era preciso que os instintos do modo de vida anterior fossem substituídos por uma disciplina rígida de cultivo e criação de animais. Isto poderia ser feito, por exemplo, criando o mito de que as pessoas que vivem dessa forma são “avançadas” em relação às demais, ainda que a Bíblia diga que este modo de vida é um castigo de Deus. Neste novo modo de vida não poderia haver desperdício de terras ou de pessoas. Quanto mais membros e espaço, maior a produção e maior as chances de sobreviver a uma catástrofe. Para isto foram desenvolvidas técnicas de dominação, como as guerras de aniquilação e conquista, além das religiões monoteístas de conversão. Por um lado temos tecnologias que nos permitem um alto crescimento populacional, por outro temos religiões que nos mantém com medo de uma catástrofe iminente, cuja causa é nossa própria natureza, reproduzindo o trauma necessário para manter esta estrutura social.

Continuaremos a tratar disso nas próximas postagens desse blog, mas gostaria de terminar com essa citação do pensador Marcel Mauss em seu "Ensaio sobre a Dádiva":

"Em todas as sociedades que nos precederam e que ainda nos rodeiam, e mesmo em numerosos costumes de nossa moralidade popular, não existe meio termo: confia-se ou desconfia-se inteiramente; depor as armas e renunciar à sua magia, ou dar tudo; desde a hospitalidade fugaz até às filhas e bens. Foi em estados deste gênero que os homens renunciaram a seu ensinamento e aprenderam a empenhar-se em dar e retribuir. É que eles não tinham escolha. Dois grupos de homens que se encontram podem fazer apenas duas coisas: ou afastar-se - e, caso suspeitem um do outro ou se desafiem, lutar - ou tratar-se bem. Até direitos bem próximos de nós, até economias não muito distanciadas da nossa, são sempre estrangeiros com os quais se 'trata', mesmo quando são aliados. (...) É opondo a razão as sentimento, opondo a vontade de paz contra bruscas loucuras desse gênero, que os povos conseguem substituir pela aliança, pela dádiva e pelo comércio, a guerra, o isolamento e a estagnação"

O que é Etnocídio

O presidente norte-americano Theodor Roosevelt encontra os índios nhambiquara em visita aos sertões do Brasil no começo do século XX. Foto de Kermit Roosevelt no livro "Through the brazilian wilderness", publicado em 1914.

"Se o termo genocídio remete ao desejo de extermínio de uma minoria racial, o termo etnocídio acena não para a destruição física dos homens (nesse caso permaneceríamos na situação genocidiana), mas para a destruição de sua cultura. O etnocídio é, portanto, a destruição sistemática de modos de vida e de pensamento de pessoas diferentes daquelas que conduzem a empresa da destruição. Em suma, o genocídio assassina os povos em seu corpo e o etnocídio os mata em seu espírito. Em um e outro caso trata-se de morte, mas de uma morte diferente." Pierre Clastres, "Arqueologia da violência".

Etnocídio, palavra introduzida recentemente para qualificar a imposição forçada de um processo de aculturação a uma cultura por outra mais poderosa, quando esta conduz à destruição dos valores sociais e morais tradicionais da sociedade dominada, à sua desintegração e, depois, ao seu desaparecimento. O etnocídio foi e é ainda freqüentemente praticado pelas sociedades de tipos industrial com o objetivo de asilarem, "pacificarem" ou transformarem as sociedades ditas "primitivas" ou "atrasadas", geralmente a pretexto da moralidade, de um ideal de progresso ou da "fatalidade evolucionista". Sinteticamente etnocídio é a AÇÃO que promove ou tende a promover a destruição de uma etnia ou grupo étnico, trata-se da destruição dos não brancos pelos brancos, dos índios pelos não índios, esta destruição não está circunscrita somente a eliminação física de indivíduo ou de grupo. Sua característica essencial está nessa ACULTURAÇÃO forçada de uma etnia ou grupo étnico, por outra cultura mais poderosa, levando, em ultima instância, desaparecimento de uma ou de outro.

O conceito de Etnocídio foi proposto em 1968 por Jean Malaurie, a partir do livro de G. Condominar "O Exótico é o Cotidiano". O etnocidio compartilha com o genocídio uma certa visão do Outro, mas não adota uma atitude violenta, e sim, ao contrário, uma atitude “otimista”: os outros, são sim “maus”, mas podem “melhorar” se os obrigarmos a transformar-se até tornar-se idênticos ao modelo que lhes seja imposto; o etnocídio se exerce “para o bem do selvagem”. Esta atitude se inscreve no axioma da unidade da humanidade, na idéia do homem universal e abstrato, no arquétipo do homem genérico — arquétipo que baseia a unidade da espécie em um dado zoológico, com o qual a cultura é reconduzida à natureza: é uma espécie de regressão anti-cultural. De fato, a Etnologia como disciplina derivou desta idéia. Assim se estima, por exemplo, que a indianidade não é algo constitucional do índio, mas sim que, ao contrário, é um obstáculo para a dignidade do indivíduo indio (que passa a ser, simplesmente, um “ser humano de cor”); despojado de sua identidade (a indianidade), o índio acederá à “dignidade de homem”, se ocidentalizará. Axiomas como “a unidade da humanidade” ou a “natural convergência das culturas no sistema ocidental” constituem a matriz ideológica do etnocidio. O “homem ocidental” se torna modelo planetário." (José Javier Esparza)

A Carta das Nações Unidas, universal e garantidora dos direitos dos grupos sociais, é possível que as etnias encontram proteção jurídica em seu Art. 2º, "Todo homem tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidas nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra condição."

Para saber mais: leia o texto "Imperialismo e Etnocídio", de Mauro de Albuquerque Madeira. Escute também músicas venezuelanas tratando do Etnocidio em mp3, clicando aqui.

27 de abril de 2007

transtornos de adaptação cultural

"The elder", crayon de Tom Lovell

Choque Cultural é um estado de isolamento social, ansiedade e depressão que acontece devido à dificuldade da pessoa em se adaptar à uma nova e diferente realidade cultural que ocorre quando muda de uma cultura, para outra.
O termo descreve o estresse experimentado ao tomar contacto com uma cultura diferente, ou ao reencontrar a própria cultura após uma prolongada ausência. Esse tipo de problema costuma ser freqüente entre migrantes e imigrantes, mas pode também ocorrer quando as circunstâncias de vida ou de regime político mudam radicalmente dentro da mesma sociedade.
Imediatamente após o contacto com a cultura diferente a pessoa pode experimentar um estresse pequeno e, durante algum tempo, até desfrutar de certos aspectos da nova cultura.
Com a manutenção da situação por mais tempo pode haver um agravamento do estresse psicológico. Os sintomas e sinais associados com este estresse variam de uma pessoa para outra, mas costuma ser representado por ansiedade, alterações do humor e/ou do comportamento.
Este estado de Choque Cultural costuma se resolver em alguns meses ou, no máximo, em dois anos. Algumas vezes pode evoluir para um transtorno psiquiátrico mais sério e com severo prejuízo do processo de ajustamento cultural.
A expressão "luto cultural" pode significar uma condição, na qual a pessoa que sofre não sofre apenas devido ao esforço de se ajustar às circunstâncias de uma nova cultura mas, sobretudo, ao se dar conta da perda da cultura anterior.
fonte: psiqweb

O Doutor Dennis White explica sobre o que é, por sua vez, o choque cultural reverso "que se dá quando a pessoa passa do etnocentrismo para o etnorelativismo":

"Para compreender o processo de choque cultural reverso e outros problemas relacionados com a reentrada, se faz necessário entender plenamente o processo do próprio choque cultural.

O choque cultural reverso é quase exatamente o mesmo que choque cultural, e deve ser previsto. O choque cultural reverso geralmente se torna um problema por que as pessoas não o prevêem, não o compreendem e tentam desviar-se dele.

A melhor preparação para o choque cultural reverso é entendê-lo, para que as pessoas o antecipem e passem a enxergá-lo como um sinal positivo de que a sua experiência de intercâmbio foi bem sucedida.

Suposições:

A- Pessoas que possuem extensas experiências de vivência intercultural passam por um processo contínuo de choque cultural reverso.

B- Este choque cultural não é um evento isolado e único, mas um processo de imersão gradativa em uma cultura.

C- A mais típica das progressões envolve um ciclo repetitivo que passa por quatro fases:

- Entusiasmo e euforia

- Desilusão e Negativismo ( algumas vezes mascarado por negação dos problemas)

- Adaptação gradual

- Competência Bi-cultural.

D- O choque cultural é um componente necessário do desenvolvimento bem sucedido da sensibilidade intercultural e da competência bi-cultural. Não pode e não deve ser evitado.

E- Tanto o choque cultural quanto o C.C. reverso podem ser entendidos como parte do processo maior de transição entre o etnocentrismo para o etnorelativismo.

F- Nós podemos e devemos nos preparar para o choque cultural. A maioria das pessoas esperam pelo menos algum nível de choque cultural quando se preparam para vivenciar uma experiência intercultural, e , portanto, não se sentem surpresas ao acontecer.

G- O CHOQUE CULTURAL REVERSO segue o mesmo processo quando da reentrada em sua própria cultura, após extensa experiência intercultural.

H- O CHOQUE CULTURAL REVERSO é geralmente uma experiência mais difícil porque:

- As pessoas não esperam por ele. (tanto as pessoas que o vivenciam quanto as pessoas em seu redor)

- As pessoas não se dão conta de quanto elas estão mudadas.

- As pessoas tendem a imaginar se existe algo de errado com elas por experimentar um choque cultural dentro de sua própria cultura.

- Mesmo quando as pessoas se preparam para o CC reverso, existe uma tendência a subestimar seus impactos."

E a Rita Lee assim canta:

Eu entrei quente
Crente que estava abafando
Quando
Tropecei no ego
Fiquei cego e caí na real

Me sinto um lixo
Bicho da pré-história
Memória
De uma raça
Que ameaça a espécie especial

Choque cultural é normal
Choque cultural é normal

Fui pra Machu Picchu
Fiquei mucho putcho, bitchu
Cheguei atrasado
No passado
E comprei um postal

Verde-amarelo
Elo perdido
Ídolo
Retornar à base
Kamikase
Pra batalha final

Choque cultural é normal
Choque cultural é normal

Não senhor, eu não sou inferior!

26 de abril de 2007

E o quetzal vive...

25 de abril de 2007

A Noite dos Pássaros

Índio jurupixuna retratado na obra de Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815)

Em 1773 a Rainha de Portugal, Dona Maria I, ordenou a um português nascido no Brasil, Alexandre Rodrigues Ferreira, na qualidade de naturalista, que empreendesse uma Viagem Filosófica pelas Capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá. O objetivo era conhecer melhor o centro-norte da colônia brasileira, até então praticamente inexplorado, a fim de lá implementar medidas desenvolvimentistas.
Em 1783 Rodrigues Ferreira deixou seu cargo no Museu D'Ajuda e, em setembro, partiu para o Brasil com a finalidade de descrever, recolher, aprontar e remeter para o Real Museu de Lisboa amostras de utensílios empregados pela população local, bem como de minerais, plantas, animais. Ficou também encarregado de tecer comentários filosófico e políticos sobre o que visse nos lugares por onde passasse. Esse pragmatismo será o diferencial desta expedição em relação às congêneres, mais científicas, comandadas por outros naturalistas que vieram explorar América.

"Uma das considerações fundamentais de Alexandre Rodrigues consiste numa crítica ao processo de colonização levado a cabo na Amazônia, concentrando-se, em larga medida, numa reflexão acerca do Diretório dos Índios. Não é sem razão, pois o Diretório consistiu em um instrumento legal de pretensões grandiosas, dentre as quais, a inserção do índio nos costumes ocidentais, de modo definitivo e inédito, uma vez que desconsiderava a condução religiosa, entendendo ser possível a civilização dos indígenas seguindo-se um programa fundamentalmente laico. O naturalista desenvolve uma reflexão condenando a execução do referido plano de civilização do indígena, diante da ação perniciosa dos elementos portugueses que dificultam a aculturação dos povos nativos à medida que não lhes incutem o amor ao trabalho – como se pode inferir da citação em destaque". (Mauro Cezar Coelho, leia esse artigo em Revista de História Regional)

Com dois desenhistas, Joaquim José Codina e José Joaquim Freire, e um jardineiro botânico, Joaquim do Cabo, que o acompanhariam durante toda a viagem, Rodrigues Ferreira, em outubro de 1783, aportou em Belém do Pará e os seus nove anos seguintes foram dedicados a percorrer centro-norte do Brasil, iniciando pelas ilhas Marajó, Cametá, Baião, Pederneiras e Alcoçaba. Subiu o Amazonas e o Negro até a fronteira, em seguida navegou pelo Branco até a Serra de Cananauaru. Subiu o Madeira e o Guaporé até Vila Bela, a então capital de Mato Grosso. Seguiu para vila de Cuiabá, transpondo-se da bacia amazônica para os domínios do Pantanal, já na bacia do Prata. Navegou pelos rios Cuiabá, São Lourenço e Paraguai. Retornou a Belém do Pará, aonde chegou em janeiro de 1792, e um ano mais tarde estava de volta a Portugal onde passou a fazer parte da diretoria do Real Gabinete de História Natural e Jardim Botânico.


Visite uma interessante animação da obra de Alexandre Rodrigues Ferreira na Biblioteca Nacional, e também.
o site da Documenta Indígena da FAPESP que contém algumas pranchas da obra do naturalista.

O escritor brasileiro Nicodemos Sena publicou virtualmente no site Triplov o seu romance "A Noite dos Pássaros", inspirado na Viagem Philosophica empreendida no final do século XVIII por naturalistas portugueses à Amazônia: clique aqui para ler o livro..

"Os índios são diferentes: levam a guerra no punho de seus tacapes; o terror que inspiram voa com o rouco som do boré; a pocema da guerra troa e retroa mais forte que a pororoca. Os índios têm “acangatar” (cocar), têm “nhanduab” (penacho), têm “oré mbaequab” (conhecimento de coisas), sentam-se conforme seu modo de sentar (“aguapic xe guapicabamo”), comem segundo seu modo de comer (“acaru xe carusabamo”). Sim, são “sarauaiamo oroicó” (selvagens), não têm “abá i aobeim” (roupa), mas são limpos, banham-se no rio muitas vezes por dia, enquanto os brancos andam “iumunéu uatá” (vestidos) mas são uns “sarigüé-nema” (sarigüês-fedorentos). “Conheço acaraí-quab (homem branco)”, prossegue Guaratinga-açu. “Cariua puxi reté” (homem branco é ruim). E conta que, ao chegar o primeiro navio português na baía de guajará, eles, os tupinambás, subiram confiantes a bordo, para comerciar, mas os portugueses os assaltaram, amarraram e escravizaram, por isso são inimigos. E arremata, provocando o riso dos seus companheiros: “Iandé perouicá, iandé poru, iandé carueté” (nós matamos gente, nós comemos gente, somos muito comilões)." (Nicodemos Sena)

valores de hospitalidade

A figura é de uma nativa da Florida, mas está aqui para representar a boa-vontade dos ameríndios em um primeiro contato com os conquistadores europeus, antes que ficassem denotadas as verdadeiras intenções dos visitantes. Regressemos à Carta de Pero Vaz de Caminha anunciando o "Achamento" das terras hoje brasileiras ao Rei Dom Manuel, carta esta que após longo tempo desaparecida só foi reencontrada em 1773, e divulgada a partir de 1817 (época em que a capital portuguesa era o Rio de Janeiro), pelo padre Manuel Aires do Casal:

* 26 de abril de 1500, domingo: "Do outro lado do rio, andavam muitos deles, dançando e folgando, uns diante dos outros, sem se tomarem pelas mãos. (...) Dirigiu-se, então, para lá, Diogo Dias, homem gracioso e de prazer. Levou consigo um gaiteiro e sua gaita. E meteu-se a dançar com eles, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem, fez-lhes ali, andando no chão, muitas piruetas e salto mortal, de que eles se espantavam e riam muito. Mas como Diogo Dias tocasse neles e os segurasse com essas brincadeiras, logo se tornaram esquivos como animais monteses (...)" (Apesar de "mansos", os índios evitavam o contato físico com os portugueses. Demonstravam dessa forma não serem tão ingênuos, assim como o fato de não deixarem os portugueses dormirem na aldeia.)

** 30 de abril de 1500, quinta-feira: "Nesse dia, enquanto ali andavam, dançaram e bailaram sempre com os nossos, de maneira que são muito mais nossos amigos do que nós seus (...)" (Aqui, Caminha se refere à docilidade dos índios, o que poderia facilitar a catequização pelos missionários católicos. É interessante notar a sinceridade do relato neste último trecho, em que Caminha reconhece as "segundas intenções" dos portugueses diante da alegria desinteressada dos índios).

As notas explicativas são do site do CanalKids. Mas vamos nos deter no que é relatado como acontecido no dia 24 de abril, sexta-feira, quando Afonso López, um dos pilotos da nau capitânea, encontra na praia nativos armados de arco e flexa, e em um contato amigável, traz dois deles para conhecerem o interior da caravela:

O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, aos pés uma alcatifa por estrado; e bem vestido, com um colar de ouro, mui grande, ao pescoço. E Sancho de Tovar, e Simão de Miranda, e Nicolau Coelho, e Aires Corrêa, e nós outros que aqui na nau com ele íamos, sentados no chão, nessa alcatifa. Acenderam-se tochas. E eles entraram. Mas nem sinal de cortesia fizeram, nem de falar ao Capitão; nem a alguém. Todavia um deles fitou o colar do Capitão, e começou a fazer acenos com a mão em direção à terra, e depois para o colar, como se quisesse dizer-nos que havia ouro na terra. E também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal, como se lá também houvesse prata!

Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como se os houvesse ali.

Mostraram-lhes um carneiro; não fizeram caso dele.

Mostraram-lhes uma galinha; quase tiveram medo dela, e não lhe queriam pôr a mão. Depois lhe pegaram, mas como espantados.

Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel, figos passados. Não quiseram comer daquilo quase nada; e se provavam alguma coisa, logo a lançavam fora.

Trouxeram-lhes vinho em uma taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram dele nada, nem quiseram mais.

Trouxeram-lhes água em uma albarrada, provaram cada um o seu bochecho, mas não beberam; apenas lavaram as bocas e lançaram-na fora.

Viu um deles umas contas de rosário, brancas; fez sinal que lhas dessem, e folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço; e depois tirou-as e meteu-as em volta do braço, e acenava para a terra e novamente para as contas e para o colar do Capitão, como se dariam ouro por aquilo.

Isto tomávamos nós nesse sentido, por assim o desejarmos! Mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não queríamos nós entender, por que lho não havíamos de dar! E depois tornou as contas a quem lhas dera. E então estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir sem procurarem maneiras de encobrir suas vergonhas, as quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas.

O Capitão mandou pôr por baixo da cabeça de cada um seu coxim; e o da cabeleira esforçava-se por não a estragar. E deitaram um manto por cima deles; e consentindo, aconchegaram-se e adormeceram.

Vamos examinar essa comunicação intercultural por sinais e o entendimento delas extraído na época. Cabral aguarda os índios com uma posição majestática, veste uma boa roupa e paramenta-se com seu colar de ouro. Obviamente segue um rito de persuasão, buscando demonstrar sua posição de autoridade através de sua imagem. Os índios, entretanto, seguem um protocolo próprio. Aguardam primeiro para serem convocados a se manifestar, por desconhecerem a prática de cerimonial dos brancos. Ao perceberem que os portugueses tampouco sabem como se comunicar, um deles se adianta e pergunta se eles vieram ter ali em busca de ouro. É óbvio que esse índio, que devia possuir determinada autoridade dentro da tribo, já que fora escolhido como representante para travar o contato, não buscaria convidar os brancos para buscar ouro no continente. Ele por princípio não responderia nada que não lhe tivesse sido perguntado. Vê o ouro usado pelo português como símbolo de autoridade, e pergunta: é em busca disso que vocês querem vir para cá?

Vê o castiçal de prata e reafirma sua pergunta: é em busca disso que vocês vieram?

É claro que os índios haviam ido com suas armas à praia para sondar que tipo de atitude tinham os visitantes para com eles. E os que vieram a bordo eram emissários encarregados de saber o que os brancos estavam procurando ali, porque tinham ancorado junto à praia.

E os portugueses gananciosos entendem que os pobres nativos estejam a fazer propaganda dos atributos minerais do continente...

O papagaio pardo pode ter sido uma espécie indiana de papagaio, o Paradoxomis unicolor. Os portugueses tinham trânsito na Índia, e não na América, portanto seria impossível eles trazerem de Portugal um papagaio que os índios conhecessem. Mas por sua semelhança com os papagaios que conheciam, usaram o papagaio para tentar entender o que os índios estavam dizendo quando acenavam para a terra ao ver ouro e prata. Os índios recebem o papagaio com naturalidade e entendendo isso como resposta de que os portugueses haviam vindo em busca de papagaios, tranqüilizam-se e dizem que o continente abriga muitos desses pássaros.

O pássaro domesticado não é um sinal de relação pacífica? Curiosamente o país ficaria conhecido como "Terra dos Papagaios". Leiam sobre o tradicional tráfico de animais silvestres em "Papagaio! A tradução ornitológica da nacionalidade", de Roberto Pompeu de Toledo.

Um carneiro lhes é apresentado e eles não fazem caso de dizer nada, afinal a terra não tinha desses animais. Mas uma galinha, isso sim é motivo de surpresa. Não a querem tocar, e os portugueses insistem. Talvez por vê-la tão prisioneira, reclamando de ser segura, tenham entendido o jeito de ser dos brancos de outro modo. Não, não há dessas aves no continente.

Servem-lhes comida. Os nativos desconfiam de serem servidos e não acompanhados. Seu costume de hospitalidade era o de comer-se em roda, entre homens. Estes brancos lhes oferecem comida e ficam observando. Instados a comer, provam da comida mas cospem. Não confiam nos visitantes brancos nem sabem como foi preparada aquela comida. Vinho, nem o cheiro. Água, só para lavar a boca.

Depois de tudo, o rosário de contas brancas lhes chama atenção. Em sua expressão como que querem dizer que esses são os seus adornos, não os adornos de ouro de Cabral. Mas os portugueses entendem que eles queiram trocar ouro por contas. Buscam entender: e o comentário de Caminha, que diz que se eles queriam levar as contas e o ouro, parece transcrição de um comentário maldoso de um dos presentes que expressa o resultado pífio da entrevista com os índios, pois de nada tinham recebido certeza.

Não fica claro como eles resolveram pernoitar. Talvez tivessem percebido que os portugueses tinham sono, e demonstraram que poderiam dormir ali no chão. Cabral lhes oferece o coxim em que descansava os pés, e eles aceitam. Fingem que dormem, para que os portugueses os deixem sossegados. E que terão conversado baixinho quando se viram eles a sós? Que terão dito aos demais quando regressaram à terra firme?

Parece que não deram crédito às intenções de dominação portuguesa, e viram os rituais de missa e outros festejos com curiosidade e atenção. Dias depois as caravelas partiram, deixando com os índios dois degredados. Ainda houveram dois grumetes que desertaram, porcerto fugindo de maus-tratos. Só retornariam os índios a ver os brancos três anos depois, quando veio Gonçalo Coelho em missão de explorar o litoral, ou em 1534 quando Pero do Campo Tourinho ganhou a feitoria de uma Capitania Hereditária lá situada e veio a colocar o marco da posse portuguesa onde hoje é Porto Seguro trazendo consigo gente selecionada do reino.

Ouro e prata, por mais que buscassem, por ali nunca foi encontrado. A Capitania de Porto Seguro, décadas depois de ter sido criada, não produzia açúcar sequer para encher um carregamento por ano para mandar a Lisboa, sendo palco do ataque dos bravos aimorés, tribo muito mais arredia que aquela que recebeu pacificamente a expedição de Cabral. Tourinho acabou degredado para ser julgado pela Inquisição, denunciado pelo próprio filho, pois enlouqueceu com a vida no Paraíso. E aí nasceu o Brasil...

Leiam: "Aspecto Histórico da Carta de Pero Vaz de Caminha", por Cândido Mendes de Almeida, membro da Academia Brasileira de Letras.

24 de abril de 2007

O Cocar do Imperador

O cocar ou Quetzalli de Moctezuma se tornou uma lenda para o povo do México. Se sabe que no Anáhuac (que conhecemos popularmente como Império Azteca), os tlatoanis, ou “homens que falam com sabedoria”, usavam dois tipos de coroas, o kopilli feito de ouro, representação mineral do sol e, o kopilli quetzalli feito de plumas de quetzal adornado com jóias preciosas arrematando tudo em uma coroa de ouro.

O kopilli quetzalli era símbolo do poder espiritual e político, e era usado nas cerimônias sagradas pelo tlatoani. As plumas nos cocares eram símbolos de conhecimento e de hierarquia conforme o número delas; portanto, o kopilli quetzalli era para o uso exclusivo do Tlatoani, como sumo sacerdote na ciência da espiritualidade e como representante do Supremo Conselho de Governo da Grande Confederação do Aháhuac.

O kopilli quetzalli, como muitas outras cosas, não era objeto pessoal do tlatoani, mas sim objeto herdado de seus antecessores, motivo pelo qual este copilli pode ter sido herdado e usado também por Cuitláhuac e por Cuauhtémoc, mas é conhecido como o Cocar de Moctezuma, já que este foi o governante que se encontrava na encruzilhada histórica no momento em que chegaram os invasores espanhóis.

Em 1519, Hernán Cortés sai de Cuba com uma expedição integrada por 508 soldados e 100 homens, além de 16 cavalos e 14 canhões. Não tinham a menor idéia da vasta organização que iam encontrar ao descer no continente que curiosamente chamaram Veracruz assim como os portugueses fizeram ao chegar à América do Sul, mas isso pode ter a ver com outra história, a do descobrimento do Rio da Prata pelos portugueses e não por Juan de Solís, a qual depois será postada nesse blog.

Nesse tempo, estranhos fatos haviam acontecido no México, sendo interpretados como augúrios nefastos relacionados com a destruição do Quinto Sol. Se tinha certeza de que Quetzalcóatl, herói mítico ou sacerdote divinificado, regressaria pelo lado so Sol nascente quando chegasse o ano Um-Cana, que por coincidência correspondia ao de 1519. Com este ânimo, Moctezuma Xocoyotzin decidiu entrar em contato com os recém-chegados.

Cortés recebeu os emissários do grande Tlatoani mandando disparar diante deles os canhões e fazendo correr cavalos e cães bravos para impressionar aos indígenas. À diferença deste recibimento, os funcionários imperiales mexicas traziam consigo era uma grande diversidade de presentes valiosos, e se conta que entre estes presentes de Moctezuma para Cortés se encontrava um traje de Quetzalcóatl que compreendia uma máscara de turquesas, um cocar de plumas de quetzal, um grande disco de jade com outro menor de ouro ao centro, um escudo de ouro e nácar adornado com plumas de quetzal, um bracelete de pedras preciosas e chocalhos de ouro, uma touca de turquesas e sandálias con enfeites de obsidiana.

De fato, narram as crônicas que Cortés se deixou vestir com os atributos de Quetzalcóatl sem compreender seu significado, e os ricos obséquios que lhe enviava Moctezuma só serviram para aumentar sua cobiça. O resto se conhece: a sangrenta história da conquista do México pelos espanhóis.

Mas Cortés não teria considerado essas vestes como despojos de guerra e as teria enviado reservadamente para seu pai na Espanha, a fim de que Carlos V sequer tivesse conhecimento destas. A caminho da Europa o corsário francês Jean Florin teria se apoderado dessa encomenda de Cortés. Tempos depois, o mesmo pirata caiu preso em Sevilha e acabou informando dos barcos por ele capturados e da encomenda de Cortés que entregara ao Rei da França. O monarca espanhol cita ao bispo de Burgos para esclarecê-lo e este por sua vez, cita a Hernán Cortés como traidor de Espanha.

Como em 1522 ao Rei da França não lhe interessam as plumas e sim o ouro, o cocar fica guardado e 50 anos mais tarde é arrematado em Veneza pela Familia de Ambrás, primos dos Borboun. Eles se tornam os propietários legítimos das vestes de Moctezuma. Em 1857, a norte-americana Zelia Nuttal do Museu Peabody de Harvard, devido a suas pesquisas, identificou a Ferdinand de Tirol como herdeiro indireto de Carlos V. Em 1878, ao se fazer um exame da Coleção Ambras, encontrou-se o cocar na Seção Etnográfica do Museu Imperial de História Natural em Viena, dobrado no canto de um armário infestado de insetos. Assim, foi identificado-desde então como o Cocar do Imperador.

O cocar, peça de arte plumária conhecida como Kopilli Quetzalli (coroa real preciosa), representava o poder econômico, político e espiritual para os mexicas. A peça encontrada em Viena, em forma de leque, estava feita de 400 plumas longas de cauda de quetzal e peças de ouro. Originalmente, os tecedores de plumas haviam utilizado, além das plumas verdes de quetzal, três espécies mais: de coloração café, de cuclillo americano; vermelhas, de espátula rosada; e uma beirada da cor azul, de charlador turquesa, as quais foram colocadas sobre uma superfície de papel mate e atadas com fios de fibras naturais.

Restaurado em Viena com os materiais disponíveis na Europa no princípio do século XX, não se puderam encontrar as plumas das aves originais, a não ser o quetzal. As outras foram substituídas pelas de um pássaro ártico da Sibéria, mas sobrepondo-se às plumas deterioradas já que se desconhecia por completo a técnica de arte plumária pré-hispânica, única no México, que inseria as plumas uma por uma. As peças de ouro “perdidas” foram repostas por discos de bronze dourado que destacam-se por sua cor das autênticas. Ainda assim, o México tem reclamado à Áustria a devolução desse cocar, considerado patrimônio histórico de seu povo.

Segundo o pesquisador mexicano Gerardo del Olmo, entretanto, o cocar de Viena é na realidade uma capa ritual. "O mal nomeado cocar de Moctezuma é na realidade uma capa de plumas preciosas que portou algum sacerdote e não o imperador do império mexica", explicou, sustentando suas investigações iconográficas na teoria do biólogo Rafael Martín del Campo, publicada em 1952. A propósito do ornamento pré-hispânico de Viena, o ilustrador científico e ornitólogo abunda sobre o uso que provavelmente teve e sobre quem portou a capa, também chamada tilma ou quetzalquémitl, no trabalho que publicou na Sociedade Mexicana de Geografia e Estatística intitulado Arte plumaria e industria del hilado de plumas entre los aztecas. Aí mesmo” – prossegue Del Olmo - “identifica às aves com as quais se confeccionou o polêmico penacho de Moctezuma”, finalizando o artigo com uma descrição da maneira com a qual o sacerdote o portava, sendo ele representante de Quetzalcóatl. A partir desse momento Rafael Martín teria proposto que o nome correto do que se conhecia como cocar era quetzalquémitl, que significa “capa de plumas preciosas”.

comércio de arte plumária está proibido no Brasil

Krokokti com disco confeccionado com penas de rabo de arara e penas de garça

O Artigo 29 da Lei 9.605 de 1998 é claro ao instituir como crime "quem vende expõe a venda, exporta ou adquire, guarda, tem em cativeiro ou depósito, utiliza ou transporta ovos, larvas ou espécimes da fauna silvestre, nativa ou em rota migratória, bem como produtos, subprodutos e objetos oriundos, provenientes de criadouros não autorizados ou sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade.

A proibição da comercialização, pelos índios, de artesanato com matérias-primas oriundas de animais silvestres não foi estabelecida pela Fundação Nacional do Índio (Funai). O veto foi firmado na verdade por meio de portaria do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama). A portaria, ao permitir a exportação de arte indígena de base animal apenas para “intercâmbio científico e cultural, entre instituições oficiais ou oficializadas...”, deixa proibida toda comercialização destes produtos que não se enquadre nas condições descritas. Leia aqui a portaria na íntegra.

Diante da nova regra, a Funai emitiu um memorando interno (aqui em arquivo pdf), em maio de 2004, proibindo a compra e venda de artesanato com partes de animais silvestres (penas, dentes, ossos etc), além de determinar o recolhimento de todas as peças expostas em lojas e demais entrepostos vinculados à fundação. Portanto a proibição de origem é do Ibama e a Funai simplesmente adequou procedimentos em respeito à legislação. O órgão indigenista, porém, mantém um grupo de trabalho que busca uma solução legal que permita aos índios trabalhar com todas as suas formas tradicionais de artesanato.

De todo modo, permanece o paradoxo exposto na apresentação de Povos Indígenas no Brasil 2001/2005: “Finalmente, vale destacar a imagem do cocar kayapó que aparece na lombada deste volume, confeccionado com a técnica de praxe, porém com canudinhos de plástico no lugar das tradicionais penas de arara, papagaio e mutum. Proibidos (os índios), de comercializar artesanato com matérias-primas oriundas de animais silvestres, essa recente e criativa solução kayapó simboliza a contradição de um país campeão mundial do desmatamento e bem colocado no topo da lista do tráfico e da extinção de aves, cuja diplomacia costuma exibir no exterior a arte plumária indígena como símbolo primeiro da identidade nacional”.

Cultura da Pesca






Confirmado: esses anzóis de luxo são mesmo mero requinte da cultura da pesca nos países do Primeiro Mundo!

23 de abril de 2007

Nota do autor

Em linhas gerais, acho que é o momento de eu fazer um contraponto e explicar o que eu considero que seja o fio da meada deste blog. Sou um sujeito cuja inspiração é muito intuitiva, e nessa navegação compartilhada que fazemos nos arquivos da web é que foi me surgindo o alento de expressar a mim mesmo por esse viés da minha origem mestiça, tão brasileira, e a necessidade que vejo da humanidade alcançar um outro patamar de compreensão e vivência das relações interculturais.
Eu posso tratar desse assunto de muitas maneiras, e encontrar uma figura e discorrer sobre ela é uma atividade que desde a escola primária eu exercitei como modo de trabalhar a criatividade, então um blog é um veículo de comunicação bem funcional e há vários que seguem nessa trilha. Percebo, entretanto, que é um mesmo tema que eu proponho trabalhar nesse blog, em suas muitas facetas, aprofundando reflexões a esse respeito: como podemos para os tempos futuros ter uma visão e uma prática cultural que se insira transformadoramente em um multiculturalismo planetário. Porque a aceitação da diversidade cultural é também a aceitação da biodiversidade e portanto uma alavanca vital para a construção desse "mundo novo" que devemos almejar.
O santo do dia é São Jorge, e falar sobre ele já permite refletirmos um pouco sobre a evolução do mito: do herói pagão ao santo cristão medieval, e do santo guerreiro mítico ao sincretismo com o orixá Ogum, que segundo os pesquisadores modernos, começou na África, antes ainda dos negros serem trazidos como escravos ao Brasil. A evolução do mito denota que uma divindade pagã eurasiática foi sincretizada pelos cristãos medievais e depois foi por sua vez sincretizado com um orixá africano, o que mostra um intenso fluxo intercultural subjacente no imaginário popular e que os intelectuais brasileiros do movimento modernista já caracterizavam como "antropofagia cultural". Um site catalão explica melhor sobre o santo guerreiro:

São Jorge: história e lenda

No dia de São Jorge, uma rosa e um livro. Esta tradição, que combina o fato religioso, a rosa como símbolo do amor e o livro como símbolo da cultura, transformou o dia 23 de Abril na data mais comemorada, por todos os catalães. Como todas as tradições bem enraizadas, muitas vezes é seguida e vivida pelo povo sem que se conheça a sua origem. Por isso, fazemos aqui uma aproximação às origens desta tradição que todos os catalães, dentro e fora da Catalunha, compartilhamos e comemoramos todos os anos.
Apesar da grande devoção que São Jorge despertou na Europa durante a Idade Média, como figura histórica sabe-se muito pouca coisa. Militar romano, cristão, que foi martirizado por volta do ano 303 por não abdicar das suas crenças. O nome Georgius quer dizer camponês, e talvez por isso a comemoração litúrgica foi fixada em 23 de Abril, em plena primavera no continente europeu. Isto também explicaria em parte que as tradições populares tenham feito dele o protetor das colheitas. Esta ligação com a primavera e o seu patrocínio dos namorados também o relaciona diretamente com a Feira das Rosas que desde o século XV se celebra na praça de Sant Jaume, onde está localizada a sede do Governo da Catalunha (Generalitat de Catalunya).
Em contraste com o pouco que se sabe sobre a história, a lenda de São Jorge está ampla e fortemente enraizada. Uma tradição muito estendida na Idade Média explicava que o martírio de São Jorge durou sete anos, diante de um tribunal formado por sete reis. Esta tradição, que lhe atribui uma grande tenacidade por não abdicar de sua fé durante sete anos de tortura, foi condenada até por Roma mas justifica que o jovem cavaleiro fosse invocado como patrono pelos cavaleiros e pelo Império Bizantino. Naquela época, a sua ajuda era invocada para combater os infiéis e foi escolhido como patrono pela Geórgia, pela Sérvia, pela Inglaterra, pela Grécia, por Aragão, pelos Países Catalães e também por Portugal. Surgiram também lendas e tradições sobre a sua ajuda aos exércitos cristãos.
A lenda mais popular, escrita por Jaume de Voràgine na Llegenda Àurea, é a que explica a vitória de São Jorge sobre o dragão. Num país não determinado, chamado Silene, um dragão aterrorizava os habitantes que, para acalma-lo, ofereciam-lhe periodicamente um cordeiro e uma donzela escolhida por sorteio. Mas um dia a sorteada foi à filha do rei; São Jorge venceu o dragão e libertou a donzela. Então o rei e todo o povo converteram-se à fé de Cristo. Desde o século XIII, a imagem de São Jorge sobre um cavalo branco, libertando a donzela e vencendo o dragão, é a mais difundida de todas as lendas populares.

Voltando a falar em antropofagia, esta é parte do substrato do mito ameríndio caapor da origem do cocar que postei há pouco. Tem a ver também com a arte plumária, e a "fagia" dos nossos irmãos animais, os hábitos carnívoros da humanidade e a prática dos sacrifícios rituais de humanos e animais, da pulsão da morte implícita na civilização humanídea como um todo, Eros (Amor) e Tânatos (Violência) como duas faces de uma mesma moeda. Aos poucos irei inserindo novos elementos para essa reflexão. Foi isso que motivou a escrever esse blog: a arte plumária e os anzóis. É por aí que eu poderei alcançar meus verdadeiros objetivos de expressão. Conto com as reflexões dos leitores! Obrigado pela atenção...

Arte plumária

"Um homem sabia matar e dos ossos de um deles, que parecem contas, fez um colar para sua mulher. Sua cunhada viu o colar e quis que o marido dela também matasse um . Este então saiu numa noite de luar, que é quando os andam como o vento sobre a copa das árvores, e foi esperá-los debaixo de um pé de ypu-y, de onde tira o mel das flores com pequenas cabaças. À meia noite veio o , e o homem atingiu-o com duas flechas, uma em cada ombro. Mas ele não morreu; pelo contrário, o é que matou o homem.

No dia seguinte, como não retornasse, o irmão foi a sua procura e achou apenas uma poça de sangue debaixo do pé de ypu-y. Ele chorou muito e foi procurar um pajé, que lhe ensinou como achar o caminho para o lugar onde mora o , debaixo da terra: seria um buraco muito fino sobre um morro. Depois de muito o procurar, encontrou o buraco. Chamou outros índios, que cavaram bastante e depois o desceram por uma corda muito comprida. Lá embaixo encontrou o caminho de e seguiu-o até a aldeia.

estava sozinho; as onças estavam caçando. Ele ofereceu um banco ao homem e conversaram. Depois de algum tempo o homem perguntou- lhe se ele tinha matado um índio. confirmou e mostrou uma grande panela onde seus pedaços estavam sendo cozidos. O homem viu com horror que era a cabeça de seu irmão que boiava por cima. convidou-o para dançar, e colocou o cocar, empunhou o tacape e cantou e dançou. O homem pediu-lhe o cocar e o tacape para dançar também. E os emprestou. O homem cantou e dançou, aproximando-se cada vez mais de , e de repente o matou com o tacape.

Nesse momento as onças chegavam da caçada e o perseguiram. E fugiu, alcançou a ponta da corda, seus companheiros o içaram rapidamente. Uma onça ainda chegou a arranhar-lhe as pernas. Despejando várias panelas de água fervente, os companheiros detiveram as onças que subiam pelo buraco. O homem morreu, mas o pajé soprou-lhe baforadas de fumo e ele viveu novamente, e contou que tinha matado . O pajé mandou colocar paus sobre o buraco e sobre estes pôs terra. Depois soprou e ficou parecendo chão novamente.

O homem estava com o cocar de . Assim os índios aprenderam a fazer cocar".

***

"Mito de Aé", contado pelos índios caapor, do Maranhão
Os caapor, que sabiam entoar os cânticos do ritual antropofágico, atribuiam-nos aos "Kapiwan e os Turiwar". Vale reparar que "Turiwar" também é o nome do irmão que traz o cocar do mundo subterrâneo no mito caapor referido.
fonte: Roque Laraia, Tupi: Índios do Brasil Atual (São Paulo: USP-FFLCH, 1986)

Inteligência animal

Seres da floresta

fotografia: Gerardo Reichel Dolmatoff
Arquivo Biblioteca Luis Angel Arango - Banco de la República (Colômbia)

Ritmos Selvagens

O pica-pau, vermelho e verde,
paralelo ao tronco
branco de papel de uma mirtácea,
como um poeta , que desde a madrugada
vem fazendo o retoque de seus versos,
martela o bico , na casca da árvore,
o poema dos índios caipós:

--“Índios escuros, das terras fechadas,
que ninguém pisou,
dos chapadões a meio caminho dos grandes rios,
broncos e brutos, sem arcos nem flechas,
rompem cabeças de missionários a cacetadas,
fazem tremer, fazem correr as outras tribos,
voam no campo atrás dos cascos dos veados,
matam veados só com pauladas,
caiâmu-poguê-dje-ipô!...”

Depois de pendurar num ramo de cajueiro
a casa de cômodos
em cartolina cônica e amarela,
os estúrdios marimbondos-de-chapéu
saem dos alvéolos e fermentam no ar,
num remoinho de ferrões e de asas,
zumbindo o hino dos índios das matas:

--“Bem escondido entre as ramadas da beira d’água,
como curta e grossa jibóia quieta,
toda enroscada nas penas lindas de uma arara
que devorou,
o nhambiquara, de rosto escuro, zingomas pintados
a jenipapo,
fica dez horas, todo encolhido, de bote armado,
os olhos vivos, o arco pronto, muita paciêcia,
e trinta flechas envenenadas ...”

O paturi, no alto,
deixa escapar do bico a piaba,
que desce no ar como uma gota
de mercúrio vivo,
e grasna para a lontra, que avança n’água,
em linha reta, como um torpedo,
noticias novas que trouxe do Xingu:

--“O bacari, belo e tranqüilo,
com o arco vermelho da guarantã,
parece mudo, parece bobo, olhando a água,
e joga a flechada no rio crespo, fisgando o lombo
de um surubi...
E fica triste, e fica bravo, só porque a ponta da flecha
[longa
pegou dois dedos mais pra baixo, no dorso liso do
[peixe de ouro,
que ele nem viu...”

Triste tucano, de bico armado,
descompensado , maior que o corpo,
chega voando e toma de assalto
um dos fortins da terra vermelha
que as térmicas vão escalonando pela campina,
e, bem na grimpa do cocoruto,
desprende a queixa dos índios do sul:

--“Os índios moles , sujos e tristes,
que não têm redes, que falam manso e dormem no
[chão,
e pulam batendo com as mãos nas pernas
[ensangüentadas
das ferroadas das muriçocas,
e cantam semanas , tirando a carne dos esqueletos, o
[bacororo,
grandes batoques nos beiços grossos, sempre tremendo,
pobres bororos,
sentem a onça a três quilômetros, na mata espessa,
bem antes da fera os farejar...”

E o jacaré crespo, de lombo verde, de papo amarelo,
ensina à arara,
toda azul, de patas pretas , de pálpebras pretas,
que ensina o gavião, que passa no vôo, fino e pedrês,
que ensina a um bando, que vai de mudança, de
[maracanãs,
o canto das índias dos carajás:

--“Carajás das praias do Araguaia,
meio vestidas, meio peladas, mal domesticadas,
mulheres roxas, de nariz chato,de pés enormes,
trincando piolho nos dentes brancos,
índias pesadas, quase na hora de dar à luz,
vêm nas pirogas, em troncos bambos, finos , compridos,
com cachos de meninos , curumins vivos, equilibrados,
dependurados,
e as canoinhas passam ,à flor das águas , como coriscos,
à frente dos ventos, batendo piranhas, vencendo asas e
[pensamentos
Araguaia abaixo, do Caiposinho até conceição...”

O dia inteiro, as águas ouviram,
e as matas entenderam,
as vozes que o vento vai levando
para oeste, para longe, para alem de Culuene,
onde o sol se apaga , como a fogueira da última taba,
onde os cocares dos buritis pendem imobilizados,
e o rio marulha a canção dos guerreiros
que vão desaparecer...

João Guimarães Rosa (Magma – Editora Nova fronteira)

22 de abril de 2007

a arara vermelha

Foi procurando por "scarlett macaw" (eu estava fazendo uma tradução de um texto em inglês sobre uma toma de aiauasca nas selvas colombianas) que eu encontrei o site islandês dos anzóis. Aí lá, além desses anzóis adornados de plumas das mais diferentes aves, ainda há essas figuras das mesmas. O contraponto entre a fria Islândia e essas aves coloridas da selva é evidente, mas imaginar que toda essa arte plumária seja destinada a pescar... aí é demais, eu não entendo mesmo um destino tão "descartável" para uma arte assim, a não ser como uma soberba extravagância!... A pergunta que fica é: qual a origem dessas plumas???

Anzóis (II)

Arte de Jed Khalid, daquele site islandês de material de pesca. Como eu acho bonito mas não entendo para que tamanho requinte, se alguém souber por favor me explique... Este se chama "King Fisher" (Rei Pescador), que lembra até um dos personagens da lenda do Graal.

Tropicália quinhentenária

Filme de 1937 do cineasta mineiro Humberto Mauro, clássico do "Estado Novo" varguista. A trilha sonora de Villa-Lobos é disponível em cd gravado pela Rádio Sinfônica Eslovaca, Maestro Roberto Duarte.

Sobre o Descobrimento, que a meu ver possui um sentido mítico importante para a noção de brasilidade, Fernando Novais, dentre outros historiadores, opina que ali aconteceu apenas o estabelecimento da intenção de Portugal de criar uma nova colônia, e não uma nação. A existência de um mito fundador, entretanto, parece ser necessário para o sentimento nacionalista de qualquer país, e no caso do Brasil este "achamento" português foi realmente um achado, sobretudo no relato de um contato intercultural pacífico que segue, enquanto mito, ressoando como ideal até a nível subconsciente. Não foi nas armas alçadas do 7 de Setembro nem nas do 15 de Novembro o nascimento da nação: foi na visão e contemplação da terra paradisíaca, ao 22 de Abril!

o Brasil no mapa de Piri Reis

Recorte do misterioso mapa de 1513 do almirante turco Piri Réis, destacando o que seria o referente ao atual território brasileiro na América do Sul.

Segundo Jacques Bergier em "Os Extraterrestres na História" (publicado no Brasil pela Editora Hemus em 1981), as cartas de Piri Réis anotam as constelações: "É assim que, no lugar da carta, no Antártico, onde está a região de Queen Maud Land, se encontra indicada a constelação da Serpente, visível no hemisfério Sul, apenas à latitude 70/72 graus, isto é, exatamente a latitude de Queen Maud Land. Perto do litoral da Argentina está indicada a constelação Argo. No centro do Brasil, a constelação de Touro; e ao Sul um lobo, do que se pergunta se ele representa uma constelação ou outra coisa".

No site "Presença Muçulmana nas Américas" se destacam as traduções das seguintes notas em turco feitas ao longo do mapa, e que seriam referentes às navegações portuguesas de então:"VI - Esta seção mostra de que maneira o mapa foi feito. Neste século não existe outro mapa como este. As mãos desse pobre homem o desenhou e agora ele está pronto. Tirei meus dados de cerca de vinte cartas e Mappae Mundi - há cartas que remontam aos dias de Alexandre, o Senhor dos Dois Chifres, que mostram a parte habitada do mundo, os árabes chamam essas cartas de Jaferiye - de oito Jaferiyes daquela espécie e um mapa árabe da Índia, e dos mapas feitos pelos portugueses, que mostram a Índia e a China geometricamente desenhados, e também de um mapa da região ocidental feito por Colombo. Reduzindo todos esses mapas a uma única escala, cheguei a esta forma final. Por isso, o presente mapa é tão correto e confiável para os Sete Mares quanto o mapa daqueles nossos países é considerado correto e confiável por nossos marinheiros.

VII - É relatado pelo português infiel que neste lugar a noite e o dia são mais curtos em duas horas. Mas o dia é muito quente e de noite há muito orvalho.

VIII - A caminho da Índia, um navio português encontrou um vento contrário (soprando) da praia. O vento da praia ... (ilegível) o navio. Depois de ser desviado por uma tempestade na direção sul, eles viram uma praia oposta a eles e avançaram em direção a ela (ilegível). Perceberam que estes lugares são bons para ancorar. Lançaram a âncora e foram para a praia em botes. Viram nativos andando, todos nus. Mas atiraram setas, as pontas eram de osso de peixe. Ficaram lá oito dias. Negociaram com aquelas pessoas através de sinais. Aquela barcaça viu aquelas terras e escreveu sobre elas, as quais ... A dita barcaça, sem ir para as Índias, voltou a Portugal, onde, depois da chegada, deu informações ... Eles descreveram aquelas praias detalhamente ... Elas tinham sido descobertas por eles.

IX - E neste país parece que há monstros de cabelos brancos nessa forma e também bois de seis chifres. Os infiéis portugueses escreveram em seus mapas ... Este país é um desperdício. Tudo está em ruínas e diz-se que grandes cobras podem ser encontradas aqui. Por esta razão, os infiéis portugueses não desembarcaram naquelas praias e diz-se também que é muito quente.

XI - E estes quatro navios são portugueses. Seu modelo é descrito abaixo. Eles viajaram saíndo do lado ocidental até a Abissínia, a fim de alcançar as Índias. Eles disseram em direção a Chalice. A distância é de 4 200 milhas.

XII - ... sobre esta praia uma torre ... é contudo ... neste clima de ouro ... pegando uma corda ... diz-se que eles mediam ...

(NOTA: O fato de que metade de cada uma daquelas linhas esteja faltando é a prova mais clara de que o mapa foi feito em dois)"

O mito fundador da brasilidade

Começo por este quadro de Cândido Portinari, que é o mais belo de todos os já feitos sobre o tema: a tela "Descobrimento do Brasil", de 1956, tem 199x156 cm de tamanho e pertence ao Museu de Valores da Coleção do Banco Central do Brasil e está em Brasília. Reparem os detalhes da pintura corpórea dos personagens, e o menino que "antevê" ou "prevê" o que está por vir.

Eu na verdade nem estava pensando em começar um blog por esses dias, fui pesquisar araras vermelhas, achei os anzóis da Islândia, e bateu aquela vontade de expressar um pouco sobre meus valores culturais. Daí que é fácil começar um blog hoje em dia, difícil é encontrar um "fio da meada" para não ser só um diário-de-bordo. Acho que eu peguei a linha, e esse 22 de abril vem a calhar para eu expor aquilo que desde antes do Quinhentenário venho matutando.

Não, eu não aderi aos "500 Anos". Aquilo lá que houve em Porto Seguro, com os índios sendo não apenas maltratados, o que é usual, mas também agredidos, foi uma vergonha pra toda a nação. Meses atrás eu estive na Aldeia Fronteira dos hunikuins do Alto Purus e o cacique Mário Domingos assim como meu irmão Rantizal Oliveira me contaram dos percalces que passaram nos tais festejos orquestrados pelos políticos intelectuais. Houve bala de borracha e o cacete. Isso é que é a democracia brasileira! Ainda bem que ninguém na época usou o termo Quinhentenário, fui só eu mesmo: por isso me sinto à vontade de retomar o tema.

O mito fundador da brasilidade, no meu entendimento, é o avistamento do Monte Pascoal. É no momento em que gritam "Terra à vista", e o capitão diz terem chegado à Terra de Vera Cruz, que se funda o Brasil. Não é lá na Independência do 7 de setembro, como preferem os astrólogos. Estão certos talvez os historiadores que dizem que a História do Brasil começa só com o surgimento do Estado brasileiro: antes éramos apenas um território que não se caracterizava como um só país. Mas o Brasil assim chamado começou naquele abril de 1500 sim: foi o momento da fecundação, fecundação que não houve quando outras nações antes aqui vieram ou aqui passaram. O momento que deu origem ao Brasil foi aquele, relatado assim por Viotti:

'(...) por volta das 15:00, “horas de véspera”, um primeiro marujo pronuncia a famosa e esperada sentença: “terra à vista”. (...) No meio do alvoroço das comemorações, o capitão, de 32 anos, retira-se para o altar que havia mandado fazer em honra da imagem de Nossa Senhora da Esperança, que ele próprio escolhera como padroeira da viagem e, ajoelhado, reza!...
Segundo relata Pero Vaz de Caminha em sua carta, um dos poucos documentos que nos chegaram, “... houvemos vista de terra! A saber, primeiramente de um grande monte, muito alto e redondo, e de outras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos; ao qual o monte alto o capitão pôs o nome de ‘O Monte Pascoal’ e à terra ‘A Terra de Vera Cruz’”.'

O momento do nomeamento é um momento espiritual forte, mas a visão do Monte Pascoal é o ponto-chave: o monte citado tem 586 metros de altura, e se destaca na paisagem ao redor que não alcança duzentos metros. Para as culturas ameríndias um lugar assim é caracteristicamente uma "huaca", pois um monte que pode ser circundado em toda a sua extensão é sempre um local sagrado, um local de adoração e de comunicação com o plano superior. Se não sabemos ao certo as tribos que viviam ali, nem sua forma de expressão religiosa, pois os pataxós foram "colocados" lá muito depois (vide a História dos Pataxós), o certo é que não foi um lugar qualquer aquele que os portugueses avistaram. O fato de terem passado quarenta dias navegando até o domingo de Páscoa (Pessach = Passagem) tinha a sua singularidade, e no momento de avistar a terra o capítão português chama o monte de Pascoal aludindo também a isso, à travessia do Mar Vermelho que dá origem à Páscoa judaica bem como aos quarenta anos em que os judeus vagaram pelo deserto até chegar à terra prometida.

Sobre a importância dos judeus na engenharia náutica portuguesa, assim escreve Marcelo Ghelman :
"Afigura-se, desse modo, evidente que, em grande parte, a cooperação científica dos judeus do século XV tornou possível as viagens transoceânicas e as descobertas realizadas pela frota lusitana. Mas, a contribuição judaica ao descobrimento de novas rotas e de novas terras para a coroa portuguesa não se limitou ao campo científico de feição preparatória, senão também se traduziu na participação direta das temerárias viagens, nas quais os judeus se revelaram de vital utilidade, graças inclusive ao conhecimento que tinham das línguas e costumes de vários países. Assim, também tomaram parte saliente na expedição que resultou no descobrimento do Brasil, pois que, na frota dirigida por Pedro Álvares Cabral, viajaram como conselheiros especialistas pelo menos dois judeus: Mestre João, médico particular do rei e astrônomo equipado com os instrumentos de Abraham Zacuto, e que tinha como incumbência realizar pesquisas astronômicas e geográficas; e Gaspar de Lemos, também conhecido como Gaspar da Gama e Gaspar das Índias, intérprete e comandante do navio que levava os mantimentos, e justamente considerado pelos historiadores como co-responsável pelo descobrimento do Brasil".

"Quanto à questão relativa à chegada à Terra de Vera Cruz, entendo não ter ocorrido "o acaso", de forma alguma. É enorme o número de evidências contraditórias. Não é possível ignorar que várias buscas já tivessem sido desencadeadas, tendo como alvo as terras do Sudoeste do "Novo Continente de Colombo". No meu entender, o argumento mais positivo de todos é que em nenhum trecho pertinente da Carta de Pero Vaz de Caminha há qualquer menção a "DESCOBRIMENTO", sempre figurando o termo "ACHAMENTO", que na época conceituava o fato de se encontrar / achar algo que estava sendo procurado". (Carlos Oliveira Fróes)


Enfim, ressalvando ainda a importância do 22 de Abril como mito fundador temos o fato de que nesse dia os portugueses viram a terra mas não desceram a ela. Portanto não se trata da data do desembarque dos portugueses, e sim da visão da terra prometida o que interessa, o que faz o mito, e o que funda realmente a idéia do Brasil. A Terra de Vera Cruz, a Ilha de Santa Cruz, o Brasil, nasceram na visão do Monte Pascoal:


Quarta-feira, 22 de abril de 1500 – No fim da tarde, a frota de Cabral avistou o cume do Monte Pascoal. Ao crepúsculo, a 24 quilômetros da praia e a uma profundidade de 34 metros, os navios lançaram âncoras.

Quinta-feira, 23 de abril de 1500 – Às dez horas da manhã, os navios ancoraram defronte da foz do rio Caí. Nicolau Coelho, veterano das Índias, foi até a praia, num bote, e lá fez o primeiro contato com 18 nativos.

Sexta-feira, 24 de abril de 1500 – Por conselho dos pilotos, a armada levantou âncora e partiu em busca de melhor porto. Encontraram-no seguro, 70 quilômetros mais ao norte. Ali, dois nativos subiram a bordo. Pouco falaram e logo dormiram no tombadilho da nave de Cabral.

Sábado, 25 de abril de 1500 – Bartolomeu Dias, Nicolau Coelho e Pero Vaz de Caminha foram á praia e encontraram cerca de 200 indígenas. Houve troca de presentes de pouco valor.

Domingo, 26 de abril de 1500 – Frei Henrique, franciscano que seria inquisidor, rezou a primeira missa em solo brasileiro, na Coroa Vermelha. Houve grande confraternização entre nativos e estrangeiros ao longo de todo o domingo.

Segunda-feira, 27 de abril de 1500 – Diogo dias e dois degredados visitaram a aldeia dos tupininquins, erguida a uns dez quilômetros da praia. Não lhes foi permitido dormir lá.

Terça-feira, 28 de abril de 1500 – Os portugueses fizeram lenha, lavaram roupa e prepararam uma grande cruz.

Quarta-feira, 29 de abril de 1500 – Ao longo de todo dia, o navio dos mantimentos, que seria enviado de volta a Portugal, foi esvaziado de sua carga.

Quinta-feira, 30 de abril de 1500 – Cabral e os capitães desembarcaram. Na praia, havia uns 400 nativos, com os quais eles passaram o dia dançando e cantando.

Sexta-feira, 1º de maio de 1500 – A tripulação deixou os navios e seguiu procissão para o erguimento da cruz.

Sábado, 2 de maio de 1500 – A esquadra partiu para Calicute, o navio dos mantimentos foi para Portugal. Dois grumetes desertaram a nau capitânia. Na praia, aos prantos foram deixados dois degredados.

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